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ESTRANHOS NO PARAÍSO
Folha acompanha um dia de trabalho do grupo que tenta ajudar imigrantes desesperados no deserto
ONG traz água para salvar ilegais nos EUA
RAFAEL CARIELLO
ENVIADO ESPECIAL AO ARIZONA
Quando foi encontrado no deserto do Arizona, Filiberto Lopez
segurava uma garrafa d'água vazia e caminhava havia quatro dias
desde o México. Disse que não comera nada em dois dias e não bebia água desde a noite anterior.
Sentia dores no peito e nas pernas
e afirmou ser diabético.
Só largou o vasilhame inútil
quando Mario Arosema, 25, o integrante de uma ONG de assistência a imigrantes que o encontrou,
ofereceu outra, cheia até a boca, e
uma escolha: entregar-se à Patrulha de Fronteira, que o levaria a
um hospital e depois certamente
de volta ao México, ou seguir caminho a pé sob o sol de mais um
dia, até a cidade mais próxima.
"Tenho vontade de voltar, mas
não posso. Devo muito dinheiro",
declarou Lopez, 24, ajeitando na
cabeça o boné e respirando com
dificuldade. Na manhã da última
segunda-feira, às 8h, a temperatura já atingia os 40C.
A Folha acompanhou um dia
de trabalho de Arosema, que atua
na Humane Borders -ou Fronteras Compasivas, que é o nome
em espanhol. O objetivo da ONG,
segundo seu fundador, reverendo
Robin Hoover, é "tirar a morte da
equação da imigração".
Para tentar fazê-lo, espalharam
52 estações de água pelo deserto,
ao longo da fronteira sul do Arizona, um dos locais de mais intensa travessia de migrantes -e,
considerados os números dos casos de morte, um dos mais perigosos também. A cada semana,
dizem, reabastecem os "postos"
com cerca de 4.000 litros de água.
Segundo dados que levantaram
com a Patrulha de Fronteira, o
número de mortos no setor de
Tucson -que corresponde à
maior parte da fronteira do Arizona com o México- cresceu de 12,
em 1996, para 174 no ano passado.
Foi nessa região, perto da cidade
de Douglas, que, tentando entrar
nos EUA, morreram dois brasileiros desde o início de junho.
O reverendo Hoover, que quando vai "a campo" usa botas e chapéu de caubói, explica que a Patrulha de Fronteira "fechou" as
entradas urbanas da divisa com o
México, deixando como principal
canal de entrada o deserto.
"Havia 11 anos ninguém morria. A partir de 93, a Patrulha de
Fronteira fechou as áreas urbanas
com mais eficiência -por onde
vinham os migrantes, de ônibus
ou caminhando pelas cidades.
Agora, nos empurraram para o
deserto, de propósito", afirma.
Arosema -que tem uma loja
de peças para caminhões- conta
que vai ao deserto reabastecer os
pontos de água pelo menos uma
vez por semana -"às vezes duas
ou três". Diz que, em nove de cada
dez incursões, encontra migrantes. "Sempre precisam pelo menos de água e comida. Em um terço das vezes, são casos como o
que vimos segunda-feira", relata,
referindo-se à escolha que Lopez
tinha que fazer no dia em que a
Folha acompanhou Arosema.
"Dói tudo"
Lopez contou que começou a
travessia com um grupo de 13
pessoas, mexicanos, mas foi
abandonado na segunda noite,
após se desentender com um deles. "Discutimos. Tinha um que
abria as mochilas e tirava a comida." Quando acordou, tinham ido
embora e levado sua sacola. Seguiu o caminho acompanhando
os postes de eletricidade que cruzam o deserto até as cidades.
Sentado agora sob um esboço
de sombra criado por um arbusto
de galhos sem folhas, o migrante
pergunta se Arosema não pode levá-lo até Tucson, segunda maior
cidade do Arizona, distante uma
hora de carro dali.
Nada feito. Se colocasse Lopez
em sua caminhonete, a Patrulha
de Fronteira poderia detê-lo por
ajudar alguém que, de toda forma, era um criminoso.
"Não temos permissão para isso. E você só pode ir para um hospital se avisarmos a imigração. O
que sente?"
"Doem-me as pernas, o peito,
tudo."
"Beba mais água."
"Como uma coisinha assim, e
daqui não passa", diz Lopez,
apontando a garganta.
"Pensa em permanecer nos
EUA?"
"No México não nos pagam
nunca. Tenho carteira de motorista de caminhão e tudo."
Arosema mostra onde ele pode
descansar. Mais adiante, os arbustos são mais altos, a sombra é
maior, e a chance de ser achado,
menor. "Mas, se tem dúvidas sobre a sua saúde, é melhor se entregar do que estar morto."
"Já viajei tanto, já fiz tanto sacrifício", responde o rapaz, que tem
a pele bronzeada, um bigode fino
crescido e um pequeno brinco de
argola na orelha esquerda.
"Está tudo bem"
A sede e centro de referência para as cerca de cem pessoas que
trabalham para as Fronteras
Compasivas é a Primeira Igreja
Cristã de Tucson.
No sermão do último domingo,
o reverendo Hoover comparou
passagens do Antigo e do Novo
Testamento com a história dos
atuais migrantes. Falou da escravidão dos judeus, da travessia do
deserto e, numa auto-referência,
do Bom Samaritano. Para o pastor, o abandono de casa para se
lançar no deserto parece servir
como metáfora para a vida.
Tomada no sentido que a palavra tem para os americanos, havia
apenas duas pessoas que não
eram "brancas" ali na cerimônia
-Arosema e Michael Wilson, 55,
índio da nação Tohono O'odham,
que ocupa um território autônomo no sul do Estado e também faz
fronteira com o México.
Foi Wilson que, na terça-feira,
durante incursão para reabastecer os postos de água dentro do
território indígena, ofereceu a
mesma escolha a Juan Carlos Delgado, 30, que também tinha sido
deixado para trás pelo grupo com
que cruzava o deserto para tentar
a vida nos EUA.
Com os pés inchados, sangrando, e sem conseguir mais caminhar, sua opção foi mais fácil.
"Vou ficar aqui, esperando pela
"migra'", disse, sentado à beira da
estrada de terra onde foi encontrado.
Apesar da mulher e dos três filhos -um de dez, outro de seis e
um bebê de um ano de idade-
que havia deixado na cidade de
Guanajuato, Lopez ainda resistia
uma hora e um litro e meio de
água depois de ser encontrado
por Arosema. "Recomendo de
verdade que venham buscá-lo e o
levem ao hospital."
Não é primeira vez que Lopez
entra ilegalmente nos EUA, diz.
Há seis anos, morou no Estado da
Pensilvânia, trabalhando com
seus irmãos, que ainda estão por
lá, no conserto de telhados. Já tinha dois filhos e ficou por quatro
anos. Voltou para o México. Agora, o dinheiro acabou, diz, e pretende reencontrar seus irmãos
mais ao norte.
Arosema pergunta se ele tem dinheiro. "Tenho "mexicanos'", responde. O integrante da ONG tira
da carteira US$ 38, que entrega a
Lopez. O migrante fica segurando
a quantia, sem colocá-la no bolso.
O que disse às crianças antes de
vir? "Não sabiam. Estavam dormindo."
Sobre o que ele e a esposa conversaram na última noite? Responde apenas: "Só choramos. Nada mais".
Uma caminhonete branca aparece, vindo na direção de onde estamos. Lopez ainda tem na mão o
dinheiro. Mais tarde, questionado
se não tinha medo nas suas idas
ao deserto, Arosema disse que
nessa hora sentiu. Este repórter
também.
Dois sujeitos pulam do carro, e
dizem ser da patrulha. Perguntam
se Lopez gostaria de ver o médico.
"Queria vê-lo, mas não sei", hesita.
Não tem mais escolha. É levado
pelos policiais. Antes de entrar no
carro, dá um número de telefone
a Arosema e faz um pedido:
"Ligue para minha irmã Juanilla. Diga que estou bem. Que está
tudo bem".
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