|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ENTREVISTA
Ex-presidente sugere que candidato evite questões polarizadoras postas por Bush para vencer com "margem razoável"
Kerry deve focar valores, aconselha Clinton
PHILIP STEPHENS
DO "FINANCIAL TIMES"
O senador John Kerry, virtual
candidato democrata à Presidência dos EUA, deve combater os esforços republicanos para fazer da
eleição um debate sobre o casamento gay e outras "questões culturais", alertou o ex-presidente
Bill Clinton (1993-2001).
Em vez disso, disse Clinton em
entrevista ao "Financial Times",
Kerry deve travar uma campanha
baseada em valores e concentrada
na saúde, educação e combate ao
crime. Se mantiver essa posição, o
democrata pode vencer por "uma
margem bem razoável".
Clinton, que está em viagem pela Europa para promover sua autobiografia, ofereceu caloroso endosso à candidatura de Kerry e
descartou sugestões de que ele tenha derivado do passado liberal
do partido, descrevendo-o como
um "novo democrata" dotado de
visão para o século 21. O ex-presidente também elogiou John Edwards, o candidato a vice, e reconheceu nele um futuro rival às aspirações presidenciais de sua mulher, Hillary. Leia os principais
trechos da entrevista.
Pergunta - John Kerry conseguirá
conquistar a Presidência? Ele é um
democrata à maneira de Clinton?
Bill Clinton - Se John Kerry é um
"novo democrata"? Tenho certeza que sim. Ele vem sendo um
membro iconoclasta do partido,
difícil de enquadrar em qualquer
definição. É liberal, socialmente,
pois apóia os direitos homossexuais, os direitos civis e os direitos
femininos. Tem um histórico forte quanto às questões ambientais.
Creio que todas as provas o favoreçam. Em muitas questões cruciais, ele se alinhou à nova abordagem que adotei. Por isso, acredito que seja possível dizer -não
apenas por causa de sua experiência no Vietnã, mas também por
ele ter trabalhado, no meu governo, para modernizar as forças armadas, esse tipo de coisa- que
ele seja claramente um "novo democrata". Kerry tem muitas
idéias interessantes sobre saúde e
educação, e acredito que, se essas
coisas tiverem destaque em sua
campanha, as pessoas o verão como um legítimo herdeiro da filosofia dos "novos democratas".
Pergunta - E Edwards?
Clinton - Acho que Edwards segue o mesmo modelo. As posições dos dois eram um pouco diferentes durante as primárias,
mas Edwards não está na política
há tanto tempo quanto Kerry.
Pergunta - Quando as pessoas dizem que ele é o novo Clinton, o senhor se sente lisonjeado?
Clinton - Eu gosto muito dele,
acredito que seja muito inteligente, articulado. Seu coração bate
em compasso com os dos cidadãos comuns dos EUA. Acredito
também que ele ainda esteja em
processo de desenvolvimento como líder político e que seu potencial seja ilimitado. Por isso, acho
que a comparação é muito lisonjeira.
Pergunta - Em 1992, a economia
definiu a eleição. Agora estamos
em uma luta política diferente, em
que há uma disputa cultural sobre
a natureza da sociedade...
Clinton - Concordo que a economia tornou possível a minha vitória em 1992, mas acho que é simplificar demais dizer que venci
por causa da economia. Sem a depressão econômica, eu talvez não
tivesse conseguido montar uma
campanha convincente. Mas
acredito que a minha vitória se
deva tanto a novas idéias quanto
aos valores básicos que defendia.
O tema da minha campanha era
oportunidade, responsabilidade,
comunidade, e a pauta de valores
na eleição de 92 era muito importante. Eu defendia que ressaltássemos as nossas responsabilidades
mútuas, minha mensagem dava
muita importância aos valores.
Quando venci, trabalhamos
muito com as comunidades. Convidei para o governo pessoas que
não concordavam comigo quanto
ao aborto, quanto aos direitos homossexuais, e pedi que me ajudassem a reduzir a pobreza e a
combater os problemas externos,
a levar assistência às pessoas da
Bósnia e coisas assim. Acredito
que os democratas jamais devam
abandonar sua pauta baseada em
valores, que foi uma parte importante da minha Presidência.
Simplificar demais o debate é
sempre uma tentação, dizer que
os democratas tratam de questões
tradicionais de governo e os republicanos tratam de valores. Mas
seremos derrotados se o fizermos.
Pergunta - Onde os EUA estão em
termos da batalha entre valores
conservadores e liberais?
Clinton - Acredito que exista, de
fato, uma profunda divisão, e que
a situação seja delicada. Por
exemplo, a maior parte dos americanos se opõe ao casamento gay,
mas a maior parte dos americanos se opõe, igualmente, a uma
emenda constitucional que o
proíba. Os republicanos tentarão
transformar o pleito em um debate sobre o casamento gay, um tema que gera sentimentos contraditórios nas pessoas. O mesmo se
aplica ao aborto. A coisa mais importante para Kerry é garantir
que as pessoas compreendam as
escolhas e decisões que um presidente tem de fazer, e como elas
afetam sua vida e seus valores.
O que o presidente Bush tentará
fazer, creio, é transformar a eleição em um debate mais abstrato,
a favor ou contra o casamento
gay, a favor ou contra o aborto, a
favor ou contra o controle de armas, todo esse tipo de questão
clássica, a favor ou contra os cortes de impostos. Se a questão girar
em torno de escolhas abstratas
em lugar de tratar das decisões
que os presidentes tomam na prática, ele tem a chance de dividir o
eleitorado ao meio e talvez vencer
com base nas medidas de segurança. Na verdade, a decisão deveria ser tomada quanto a educação, saúde, crime, coisas assim. O
que um presidente faz e a maneira
pela qual os valores americanos
tradicionais são manifestados em
suas decisões práticas, esse é o caminho para a vitória de Kerry, e
por uma margem bem razoável.
Pergunta - Que papel a política
externa tem nessa equação?
Clinton - Muito maior do que seria o caso normalmente. E creio
que os efeitos sobre o presidente
sejam ambivalentes. Acredito que
haja um consenso de que a guerra
contra o terror é algo que prosseguirá indefinidamente, mas, com
base nessa teoria, teríamos de ter
a mesma pessoa no poder para
sempre. Veja há quanto tempo a
Europa convive com isso.
Creio que, em certo sentido, a
questão seja relativamente nova
para nós e provavelmente beneficiará o presidente. Mas, por outro
lado, há a questão da CIA, a transferência da ênfase da Al Qaeda para a obsessão com o Iraque; e há o
fato de Kerry ter um histórico militar irretocável e sempre ter tratado com seriedade das questões de
segurança nacional.
Acredito também que os americanos se preocupem mais com esse assunto no momento do que
fariam normalmente e penso que
o fato de que o mundo nos considere unilaterais demais pode ter
alguma influência nos EUA.
Em termos gerais, creio que a
posição democrata é a de que
sempre que possível deveríamos
cooperar com nossos aliados, reservando o direito de agir por
conta própria caso seja inevitável.
A posição republicana vem sendo
a de que, já que somos a única superpotência militar, econômica e
política do mundo, devemos fazer
o que consideramos certo sempre
que possível e cooperarmos apenas quando precisarmos. Esse debate será importante nessa eleição, e minha impressão é que os
democratas têm uma boa chance
de vencer a disputa.
Pergunta - A Guerra do Iraque deveria ter sido travada?
Clinton - O que ficou provado é
que o erro, na época, foi não termos permitido que os inspetores
de desarmamento da ONU concluíssem o trabalho. Se Hans Blix
tivesse terminado o trabalho e dito duas coisas, que não encontrou
provas de armas de destruição em
massa e que Saddam Hussein basicamente estava cumprindo as
ordens de desarmamento, talvez
pudéssemos ter enviado aqueles
130 mil soldados para o Afeganistão e capturado Bin Laden e seus
principais auxiliares. O mundo
seria um lugar muito mais seguro.
Caso Blix tivesse localizado armas e garantido sua destruição,
afirmando que Saddam estava
cooperando, poderíamos ter feito
a mesma coisa. Se Blix tivesse recebido as semanas adicionais que
vinha solicitando e dissesse que
Saddam não estava cooperando,
que era impossível verificar a situação das armas por falta de cooperação, eu teria apoiado um esforço internacional para removê-lo do poder, mesmo que depois
surgisse a informação de que ele
não tinha armas proibidas.
Pode-se atribuir a culpa pela situação à CIA, mas não foi a CIA
que alegou que existia um vínculo
entre Saddam e a Al Qaeda. A CIA
afirmou claramente que não havia indícios disso. A alegação foi
feita por nosso governo, sem base,
e não se pode culpar a CIA por
exagerar o problema nuclear.
Falemos dos serviços de inteligência americano e britânico. O
desempenho deles na Guerra Fria
foi brilhante. Mas a Guerra Fria
acabou e tivemos de obter informações sobre uma série de outras
coisas em lugares onde não tínhamos muitos espiões, onde não podíamos confiar nas pessoas com
as quais estávamos em contato,
onde não tínhamos pessoal que
falasse o idioma e onde as pessoas
talvez estivessem recebendo informações, como no caso do Iraque, de fontes escusas, que esperavam suceder a Saddam. Tudo
isso precisa ser corrigido.
Pergunta - O senhor acha que o
premiê britânico, Tony Blair, deveria ter dito que não entraria em
guerra a não ser que Blix tivesse
uma nova oportunidade?
Clinton - Foi isso que Blair tentou fazer. Pode-se discordar dele,
mas é preciso que haja justiça.
Blair acreditava que o ideal fosse
ir à ONU e dar a Blix o tempo de
que ele precisava e determinar se
agiríamos ou não com base no relatório de Blix. Essa era a posição
de Blair, não a de Bush. Mas o premiê foi solapado pela posição
francesa e alemã, que era a de que,
mesmo que Blix voltasse dizendo
que os iraquianos não estavam
cooperando e que não sabia se
eles tinham ou não armas, ainda
assim França e Alemanha não votariam pela remoção de Saddam.
Com isso, Blair achou que fosse
preciso recuar para conseguir o
apoio da maioria do Conselho de
Segurança. Para tanto, precisava
dos votos do Chile e do México.
Mas, a essa altura, os demais países estavam alienados em razão
da posição dos americanos e acreditavam num veto da França ou
da Rússia e portanto decidiram
não apoiar a idéia britânica. Tony
ficou na situação de ter assumido
a posição correta, mas sem o
apoio de ninguém.
Com isso só lhe restavam duas
alternativas mutuamente incompatíveis. Vemos a história de maneira retrospectiva, mas a vivemos de maneira prospectiva
-naquele momento, eu mesmo
acreditava que existissem estoques não registrados de material
para armas químicas e biológicas,
o que não quer dizer que Saddam
dispusesse de armas.
É possível dizer que Blair cometeu um erro, mas o caso dos EUA
não é o mesmo. A posição americana era a de que já tínhamos autorização da ONU e cabia a nós
decidirmos quando Blix encerraria seu trabalho, pois as armas
não eram o verdadeiro motivo
para a invasão do Iraque e não
nos incomodávamos com armas
de destruição em massa. Acreditávamos que ter uma democracia
no Iraque fosse bom, que isso
abalaria os regimes árabes, os regimes autoritários, e lançaria uma
nova onda de reformas no Oriente Médio, daria a Israel mais confiança para fazer as pazes com os
palestinos, logo, mais influência.
Essa era a teoria completa Powell-Wolfowitz [do secretário de Estado, Colin Powell, e do subsecretário da Defesa, Paul Wolfowitz].
Pergunta - Não é tão ruim...
Clinton - Não, e ainda pode funcionar. É possível discordar da decisão de Blair, mas é importante
não vê-la com base no que sabemos agora. Temos de analisar
com base no que ele sabia àquela
altura e nas alternativas que ele tinha. Blair ficou numa tremenda
enrascada quando os demais europeus não apoiaram sua posição,
que teria dado a Blix tempo para
concluir o trabalho e poderia ter
evitado a ação militar no Iraque.
Texto Anterior: Omã: Americana é condenada à morte por matar marido Próximo Texto: Iraque sob tutela: Série de atentados mata nove e fere 35 no Iraque Índice
|