São Paulo, segunda-feira, 21 de julho de 2008

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ARTIGO

Colômbia e o principiante

JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA

A Colômbia iluminou as manchetes de quase todos os meios de comunicação do mundo no dia 2 de julho. É como se uma nova era se iniciasse na história latino-americana. A barbárie pareceria ter sido vencida pela mão delicada da civilidade. A democracia latino-americana, tão aviltada por instabilidades e resquícios da Guerra Fria, caminharia para sua maturidade. O fracasso do seqüestro como meio de pressão política estaria sepultado ante discurso sereno e pacífico da senadora Ingrid Betancourt.
A opinião pública internacional respiraria aliviada. Libertou-se a refém mais famosa do mundo, mulher, família tradicional, política e ponte entre a Europa e um país do extremo Ocidente. Quase tudo que se viu nas notas apressadas, mas verdadeiramente tocadas pela boa surpresa, foi a imagem de um divisor de águas entre a liberdade de pessoa com grande visibilidade internacional e o horror da lógica da guerrilha.
O calor do momento anima interpretações as mais diversas acerca do resgate espetacular da senadora. Os críticos dos chamados "corredores humanitários" que vinham sendo construídos por grupos internacionais e alguns governantes da região, encabeçados por líderes políticos de fora, como o presidente da França, logo celebraram a manu militari empreendida pelo governante colombiano. Vitória militar de Álvaro Uribe e derrota política de Hugo Chávez, apressaram-se alguns analistas.
Outros insistiram que, sem a gradual mudança, calculada e estudada pelo apoio dos governos sul-americanos progressistas de esquerda, não teria sido possível libertar Betancourt. Houve ainda aqueles que viram na libertação da refém a mão poderosa da hegemonia norte-americana, a ocupar espaço de inteligência militar no coração de área sensível à América do Sul: seu patrimônio amazônico. E houve ainda aqueles que alinharam as crescentes perdas das Farc e dos demais grupos paramilitares colombianos -exauridos pelas crises de lealdade, reversão da opinião pública internacional e morte de seus líderes históricos- à idéia de término da guerrilha como um meio de ação política.
Todas essas interpretações possuem alguma verdade, mas não toda a verdade. Nos próximos meses teremos uma impressão menos apaixonada dos fatos. Enumero três delas.
Em primeiro lugar, a senadora que sai do cativeiro deixa para trás mais de 700 reféns, em circunstâncias que não se sabe exatamente quais são, mas não são certamente as que ela teve, tratada como foi como moeda importante de troca nas negociações entre os atores interessados na sua libertação.
Salva a grande personagem, o que se fará pelos coadjuvantes? Continuará a via militar a melhor solução? Há espaço para manobra conciliatória ou assistiremos ao recrudescimento da guerrilha? São questões sérias que necessitam ser urgentemente tratadas. Afinal, são vidas da mesma importância que a da ilustre senadora.
Em segundo lugar, está a incógnita política que representa a própria senadora, candidata natural à presidência da Colômbia, como já o fez. Seu discurso serene é de chamar a atenção. Ainda mais seu agradecimento ao presidente Uribe, de quem foi crítica feroz na eleição para a qual não pôde chegar às condições de concorrer. Qual será a opção política da potencial candidata? E como fica aquele que tem o apoio de mais de quatro em cinco colombianos nas mãos para suas ações contra a guerrilha?
Em terceiro lugar, um problema relevante para o contexto sul-americano. Se os colombianos preferem uma Bogotá policiada e militarizada, com todos os custos de cerceamento de liberdades civis e de tensões inerentes a esse contexto de controle da caserna sobre a vida cidadã, o que será a democracia colombiana quando a fase mais dura do conflito findar?
Se o conflito está findando, como anuncia Uribe, e se a senadora volta aos palcos políticos com sua versão pacifista do discurso político que todos assistimos, quais serão as opções reais do eleitor colombiano para o amadurecimento do Estado de direito na Colômbia?
Afinal, convenhamos, a Colômbia não é para principiantes. E muitos analistas apressados do hoje terão de se curvar às novas evidências políticas e culturais da difícil construção da cidadania e da tranqüilidade política na América Latina. O triunfalismo do momento pode ceder às visões do amanhã, menos luminosas que os dias atuais em Bogotá.

José Flávio Sombra Saraiva, PhD (Birmingham University, Inglaterra), é professor de Relações Internacionais da UnB.



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