São Paulo, domingo, 22 de junho de 2008

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Imposto sobre grãos foi pilar de retomada argentina após 2001

Mas aumento de taxa variável segundo preços internacionais detonou crise entre produtores agrícolas e governo Cristina

Especialistas questionam eficácia do imposto para o controle da inflação; Kirchner já foi contra, quando era governador


ADRIANA KÜCHLER
DE BUENOS AIRES

"As retenções são uma política equivocada. Servem para bancar a burocracia nacional ineficiente." A frase poderia ter saído da boca de um dos líderes agropecuários argentinos, em conflito com o governo há 103 dias contra o aumento do impostos às exportações de soja, trigo, milho e girassol, as tais retenções. Mas foi dita pelo ex-presidente Néstor Kirchner (2003-2007), em 2002, quando era governador de Santa Cruz.
De lá para cá, a visão de Kirchner mudou. Na última terça, ele disse que, sem as retenções, os argentinos "perderíamos tudo o que recuperamos nos últimos seis anos".
Assim como o Kirchner de 2002 e o de 2008, os argentinos também se dividem quando o assunto são as retenções. O aumento em março por decreto da presidente Cristina Kirchner das chamadas "retenções móveis"- que variam de acordo com o preço internacional dos grãos- provocou um locaute agropecuário, com bloqueios de estradas, panelaços, desabastecimento e a queda de um ministro da Economia.
Mas as retenções não são novidade para os argentinos. Elas começaram a ser aplicadas no país em 1967, foram suspensas nos anos 90 e voltaram em 2002, no governo de Eduardo Duhalde, como um dos pilares da recuperação econômica após a crise de 2001 -quando o governo, sem caixa, teve de acabar com dez anos de paridade entre o peso e o dólar e decretar moratória.
O aumento nesses impostos tampouco é novidade. Foi a última medida de Kirchner no poder e a primeira de Cristina.

Objetivos e inflação
Segundo o governo, as retenções têm três objetivos principais: redistribuir o que chama de "renda extraordinária" do setor agropecuário, diante do boom das commodities agrícolas no mercado internacional; garantir os subsídios a serviços como energia e combustíveis, que têm preços controlados pelo governo, e manter os preços desses grãos e seus derivados no mercado interno.
Mas especialistas dizem que as retenções não serviriam para conter os preços. "A Argentina vive um processo inflacionário generalizado que as retenções não são capazes de controlar. O imposto incide sobre quatro produtos e a inflação está em todos os lugares", diz o economista Ramiro Castiñeira, da consultoria Econométrica.
Portanto, na análise de Castiñeira, o principal beneficiário seria o governo, que engorda o caixa com as retenções -elas representam 13% da arrecadação fiscal.
Não é à toa que o governo não abre mão das retenções e demorou mais de três meses para enviar o projeto das taxas móveis para avaliação do Congresso. Com a crise do campo, que praticamente interrompeu a venda de grãos para a exportação, estaria perdendo US$ 1 bihão por mês em impostos.
Segundo o diretor do Centro de Investigação de Instituições e Mercados da Argentina, Aldo Abram, o governo ganhou US$ 25 bilhões com as retenções de 2002 a 2007. Com as retenções móveis, se as exportações voltarem ao normal o retorno seria de US$ 15 bilhões apenas neste ano.
Os analistas criticam o fato de o governo querer manter o superávit com aumento de impostos em vez de controlar seus gastos. Além disso, dizem que as retenções desestimulam os investimentos em agricultura.
"Quanto maior é a retenção, menor o incentivo a investir no que hoje é um dos setores mais eficientes e produtivos da economia", afirma Abram.

Sem receita
Apesar das críticas, nenhum economista é capaz de receitar o fim dos impostos às exportações para aplacar a atual crise.
"Ninguém sério pode defender hoje o fim das retenções. É impensável. Seria como declarar guerra ao Brasil", ironiza o diretor da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) na Argentina, Bernardo Kosacoff. "Seria um abalo à estrutura econômica, com efeitos na arrecadação, na distribuição de renda, nos preços. Hoje não é possível discutir se deve haver retenções, e sim de quanto devem ser."
Para Kosacoff, a Argentina deveria planejar substituir esses impostos por outros como um sobre operações financeiras ou sobre a renda potencial da terra, o que incentivaria a produção agrícola.
Mas incentivar a indústria e não a agricultura seria justamente o foco da política de retenções, argumenta o ex-ministro da Fazenda brasileiro Luiz Carlos Bresser-Pereira. Para ele, a política de retenções está "absolutamente correta" e é responsável pelo notável crescimento recente da Argentina, de cerca de 8% anuais.
Esses impostos, diz, evitam que o país seja tomado pelo que os economistas chamam de "doença holandesa", pela qual, com a valorização da moeda, os países perdem indústrias e viram fazendas ou minas.
Entre os anos 30 e 80, o Brasil também teve retenções, chamadas de "confisco cambial". Sem elas, diz Bresser, não teria desenvolvido indústrias. "O Brasil poderia crescer o dobro se aplicasse essa política, mas aqui ninguém tem coragem de mexer com o setor agrícola."


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