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IRAQUE OCUPADO
Para Joseph Nye, um dos papas do estudo das relações internacionais, política externa gera repúdio aos EUA
Bush mina poder americano, diz analista
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
O governo do republicano
George W. Bush descarta a relevância do "soft power", a força internacional de um país que advém de sua influência cultural e
ideológica sobre o restante do planeta, porém isso representa um
grande perigo para os EUA.
O sucesso da guerra ao terrorismo internacional depende, em
grande parte, da capacidade de
Washington de convencer, sem
fazer uso de força militar nem de
pressão econômica, outros países
a cooperar com seus esforços, e
essa capacidade tem sofrido um
forte declínio desde que os EUA
decidiram invadir o Iraque.
A análise é de Joseph Nye, doutor em ciência política e reitor da
Kennedy School of Government
da Universidade Harvard (EUA),
que foi consultor do Departamento de Estado dos EUA de 1977
a 1979 no governo do democrata
Jimmy Carter e secretário-assistente da Defesa para Assuntos de
Segurança Internacional durante
a administração do também democrata Bill Clinton, nos anos 90.
De acordo com Nye, um dos papas do estudo das relações internacionais e criador do termo "soft
power", popularizado a partir da
publicação de seu livro "Bound to
Lead: The Changing Nature of
American Power" (fadado a liderar: a transformação do poder
americano), em agosto de 1991, a
atual política externa americana
favorece o crescimento do poder
de atração de Osama bin Laden,
terrorista de origem saudita responsável pelo 11 de Setembro, e
dos extremistas islâmicos, pois
torna sua causa mais sedutora.
Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.
Folha - O escândalo gerado pelas
fotos de tortura de iraquianos na
prisão de Abu Ghraib e a Guerra do
Iraque em geral minaram muito o
"soft power" dos EUA?
Joseph Nye - Se observarmos
pesquisas de opinião em todo o
mundo, notaremos que os EUA
perderam boa parte de seu "soft
power" nos últimos dois anos. Na
Europa, por exemplo, o grau de
simpatia pelos EUA caiu 30 pontos percentuais em média.
Isso inclui países
que apoiaram a
invasão do Iraque
ou participam dos
esforços de estabilização e de reconstrução. No
mundo islâmico,
o declínio do "soft
power" dos EUA
foi ainda maior.
Assim, só posso
concluir que a
questão iraquiana
tem sido muito
custosa para os
americanos no
que se refere a seu
poder de cooptação.
Folha - Quais são as conseqüências desse fenômeno?
Nye - Quando Washington busca conseguir que outros governos
cooperem com seus objetivos no
que tange à guerra ao terrorismo
internacional, por exemplo, o
grau de cooperação dos outros
Estados é diretamente afetado pelo modo como os EUA são vistos
pela população desses países.
Quanto menos atraentes forem
os EUA aos olhos da população de
um país, menores são as chances
de seus líderes políticos tomarem
posições claramente favoráveis
aos americanos. Obviamente, nenhum líder político deixa de pensar em política doméstica quando
avalia suas ações internacionais.
Folha - Que impacto essa perda
de "soft power" terá sobre a política externa dos EUA no futuro?
Nye - Atualmente, ela já vem tornando nossas escolhas relacionadas à política externa mais difíceis. Por exemplo, o presidente
Bush queria ter um amplo apoio
aos esforços de reconstrução do
Iraque, porém muitos líderes não
quiseram dar esse apoio por conta do modo como os EUA apresentaram suas posições sobre o
Iraque. Trata-se de um custo bastante claro que tivemos de pagar
em razão de nossa atitude.
Devemos, ademais, pensar no
que ocorrerá a médio e longo prazos e na possibilidade desse quadro ser alterado. Durante a Guerra do Vietnã, nas décadas de 60 e
70, os EUA também enfrentaram
um grave problema de popularidade. Quando mudou suas políticas, sobretudo as que eram mais
impopulares, todavia, o país conseguiu recuperar
seu "soft power".
Assim, a questão de saber se a
situação permanecerá como está,
piorará ou melhorará depende
diretamente de
uma mudança de
políticas nos
EUA. Indubitavelmente, os outros Estados não
passarão a gostar
das posições americanas sem que haja uma mudança drástica em Washington.
Folha - O sr. quer dizer que os
neoconservadores, como Paul Wolfowitz [vice-secretário da Defesa],
terão de deixar de ditar as regras
da política externa dos EUA?
Nye - Creio que os neoconservadores tenham provocado uma
parte considerável do estrago.
Contudo devemos lembrar que
eles não são os únicos responsáveis pelo declínio do "soft power"
dos EUA. Afinal, os "novos unilateralistas", como Donald Rumsfeld [secretário da Defesa] e Dick
Cheney [vice-presidente], não são
isentos de culpa.
Folha - Tanto Cheney quanto
Rumsfeld sustentam que a popularidade é efêmera e não deveria
guiar a política externa dos EUA e
que o país é suficientemente forte
para fazer o que bem entende na
cena internacional. Qual é sua opinião a esse respeito?
Nye - Trata-se de um erro. Indiscutivelmente, é verdade que as
Forças Armadas dos EUA são suficientemente fortes para fazer o
que bem querem militarmente.
Entretanto não somos capazes de
fazer qualquer coisa no que se refere a governar países nacionalistas, como temos visto no Iraque.
Uma coisa é derrotar as forças
de segurança e militares de Saddam Hussein [ex-ditador iraquiano], mas construir uma democracia durável e estável no Iraque é
algo completamente diferente.
Para tanto, seria necessário que os
EUA contassem com uma cooperação internacional mais ampla.
De modo similar, lidar com a
[rede terrorista] Al Qaeda e com o
terrorismo internacional requer
um grau muito elevado de cooperação entre os EUA e os outros
países, visto que o problema não
pode ser resolvido exclusivamente por meio da utilização do poder
militar americano.
Folha - Em seu artigo para a mais
recente edição da revista "Foreign
Affairs", o sr. diz que era mais fácil
para os EUA recuperar a parcela
perdida de seu "soft power" durante a Guerra Fria, pois havia o medo
do império soviético. Atualmente,
o "soft power" não está perdendo
sua importância por causa do fim
da ameaça soviética e da configuração da cena política global?
Nye - O "soft power" nada mais é
que a habilidade de um país de
conquistar seus objetivos por
meio da atração gerada por seus
princípios, por suas práticas e por
suas causas. Os EUA não são os
únicos detentores de "soft power"
no planeta. Hoje até Bin Laden
tem sua dose de "soft power", já
que sua causa é capaz de atrair
grupos extremistas islâmicos.
O "soft power" não é, portanto,
algo que perdeu valor com o fim
da Guerra Fria. Por outro lado,
como a ameaça soviética não
mais existe, certamente será mais
difícil para os EUA recuperar a
parcela de seu "soft power" perdida em razão da Guerra do Iraque
do que foi reaver a que foi perdida
por causa da Guerra do Vietnã.
Ademais, será mais complexo
fazer que a mensagem americana
seja atraente para o mundo islâmico do que foi fazê-lo para o Leste Europeu durante a Guerra Fria.
Folha - A guerra ao terrorismo liderada pelos EUA não tem servido
para propagar o poder de atração
da causa de Bin Laden e dos extremistas islâmicos?
Nye - Como são capazes de atrair
outros extremistas para sua causa, que consiste em dizer que vivemos um choque de civilizações
que opõe o islã ao Ocidente, Bin
Laden e seus asseclas conseguem
estender e consolidar seu poder de
atração. Como os
EUA têm usado
seu "hard power"
[poder militar e
econômico] de
uma maneira brutal que agride até
seus aliados tradicionais europeus,
Bin Laden e a Al
Qaeda acabam
obtendo um fortalecimento de seu
"soft power".
Basicamente, o melhor modo
de usar o "soft power" dos EUA
na guerra ao terrorismo é tentar
atrair os moderados do mundo islâmico. Com isso, os extremistas e
os terroristas passarão a ter um
pouco mais de dificuldade em recrutar simpatizantes.
Folha - Como os terroristas dizem
querer destruir o modo de vida ocidental, como o "soft power" dos
EUA pode ajudar na guerra ao terror concretamente?
Nye - Na verdade, os EUA ou o
Ocidente nunca serão capazes de
atrair Bin Laden ou a Al Qaeda
para sua causa. Contudo a questão-chave é saber se eles representam a maioria dos muçulmanos.
Afinal, de acordo com pesquisas,
a maior parte das pessoas no
mundo islâmico quer melhores
oportunidades, educação para
seus filhos, dignidade etc.
Trata-se de aspectos da assim
chamada "cultura ocidental" que
podem ser atraentes para a maioria dos muçulmanos. É exatamente nesse aspecto que o "soft
power" tem um papel a desempenhar. Não adianta nada pensar
que é possível converter Bin Laden ou a linha dura terrorista. No
entanto é importante que esses
valores atraiam a maioria moderada, já que isso dificultará o recrutamento de futuros terroristas.
Folha - Isso significa tentar propagar o modo de vida ocidental?
Nye - Não, isso não é necessário.
É possível atrair as pessoas para
um mundo de diversidade. Nenhum Estado precisa se tornar
uma "pequena América" para poder compartilhar certos valores
que são importantes para os cidadãos americanos. As pessoas devem poder fazer escolhas sobre
seu modo de vida, e não creio que
seja preciso impor aos outros o
modo de vida ocidental ou americano. Isso seria outro erro.
Folha - Diante desse quadro geral, como o sr. analisa a situação da
ONU atualmente?
Nye - A ONU se tornou uma instância crucial para legitimar a política externa de todos os países.
Ora, se são consideradas legítimas
internacionalmente, as políticas
têm mais chances de serem
atraentes, podendo, portanto, aumentar o "soft power" do Estado
que as aplica ou as defende.
Folha - O atual governo dos EUA
minou essa capacidade da ONU ao
fazer a Guerra do Iraque sem a
anuência formal da entidade?
Nye - A administração americana está dividida acerca desse aspecto. Há pessoas no Departamento de Estado que querem
acionar a ONU e fortalecer o sistema multilateralista que ela encarna. Por outro lado, os civis que comandam o Departamento da Defesa são avessos a essa opção.
Como decidiu seguir a linha
unilateralista e contornar a ONU,
o presidente Bush deu ao mundo
a impressão de ser arrogante na
concepção da política externa
americana. Creio que isso tenha
prejudicado os interesses dos
EUA, minando seu "soft power".
Quanto à ONU, devemos lembrar que ela não constitui um governo mundial e nunca foi capaz
de ditar regras a
seus países-membros. Durante a
Guerra Fria, o
Conselho de Segurança da ONU
ficou paralisado
por conta do poder de veto das
duas grandes potências [os EUA e
a URSS].
Assim, não deveríamos alimentar ilusões em relação à ONU. Todavia não há nenhum lugar no
planeta mais legítimo para o jogo
diplomático que a ONU. Sua importância não pode ser negligenciada. Não é por acaso que vemos
o governo Bush buscar a ajuda de
Kofi Annan [secretário-geral da
ONU] e de Lakhdar Brahimi [enviado especial da entidade ao Iraque] para negociar a transferência
de poder para os iraquianos.
Folha - Se John Kerry, virtual candidato democrata à Presidência,
derrotar Bush em novembro, a perda de "soft power" será contida?
Nye - Kerry é mais inclinado a
adotar políticas multilateralistas
que Bush. Suas políticas na cena
internacional deverão ser parecidas com as aplicadas pelo governo Clinton, o que provavelmente
virá a ser favorável ao fortalecimento do "soft power" dos EUA.
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