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ENTREVISTA
Presidente quebra tradição americana de fazer alianças por pensar que EUA são poderosos demais, segundo Ivo Daalder
Bush revoluciona ação externa, diz analista
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
Após o 11 de Setembro, o presidente George W. Bush foi responsável por uma revolução na política externa americana, desprezando a política de alianças que caracterizava o país e privilegiando
a idéia de que os EUA são tão poderosos que não precisam da ajuda de ninguém na cena global.
A análise é de Ivo Daalder, pesquisador do Instituto Brookings,
em Washington, autor -ao lado
de James Lindsay- de "America
Unbound: The Bush Revolution
in Foreign Policy" (América sem
amarras: a revolução de Bush na
política externa) e ex-membro do
Conselho de Segurança Nacional
dos EUA (1995-96).
Para ele, o paradoxo dessa revolução é que, embora seja baseada
no fato de que os EUA são a única
superpotência do planeta e tenha
como objetivo consolidar o poder
americano, ela tem minado esse
poder por conta dos métodos utilizados pela atual administração
para colocá-la em prática.
Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.
Folha - De acordo com seu livro, o
11 de Setembro permitiu que a administração Bush realizasse uma
revolução na política externa dos
EUA. Como isso ocorreu?
Ivo Daalder - A idéia básica é que
Bush lançou uma revolução na
política externa americana. Porém ela não diz respeito aos objetivos que a América pretende
atingir, mas aos meios utilizados
para chegar a esses objetivos.
Estes são bastante similares aos
que tinham todos os outros presidentes americanos. Ou seja, privilegiar os interesses americanos na
cena global, conduzindo o mundo em direção aos interesses dos
EUA e fazendo com que mais pessoas compartilhem os valores
econômicos e políticos americanos. Um mundo mais livre e mais
pacífico. Mas isso não é novo.
A verdadeira revolução diz respeito aos meios usados para chegar lá e à certeza de que a América
atual é tão poderosa que pode
atingir seus objetivos sozinha,
sem o auxílio de seus aliados tradicionais, e de que, na verdade, as
instituições, alianças e leis internacionais criadas nos últimos 60
anos são obstáculos no que concerne a atingir esses objetivos.
Para a atual administração, uma
América sem amarras é um lugar
mais seguro. Assim, a "melhor
forma" de maximizar a segurança
do país é minimizar as restrições
que pesam sobre seu governo.
Isso é uma mudança radical em
relação ao modo de agir dos outros presidentes dos EUA do pós-guerra. Afinal, os predecessores
de Bush realmente acreditavam
que fosse importante trabalhar ao
lado de seus amigos e aliados nas
instituições transnacionais.
O atual presidente crê que essas
instituições impeçam a realização
de seus objetivos. Na última quarta-feira, Bush deu um exemplo
claro de seu modo de pensar ao
dizer que a Liga das Nações [precursora da ONU] fracassou porque não conseguiu enfrentar ditaduras. Ele esquece, contudo, que a
Liga das Nações fracassou porque
os EUA não faziam parte dela.
Em seguida, Bush afirmou que a
ONU tinha se tornado tão irrelevante quanto a Liga das Nações
porque não conseguira enfrentar
seus desafios. De novo, ele disse
uma inverdade, já que foram os
EUA que contornaram a ONU,
tornando-a menos relevante.
Folha - Esse modo de agir na cena
internacional é diferente do realismo do ex-secretário de Estado
Henry Kissinger (1973-77)?
Daalder - Sim. Kissinger sabia
que era preciso trabalhar ao lado
dos outros países ou, ao menos,
dos aliados dos EUA. É verdade
que, em parte, ele pensava assim
porque não acreditava que o país
fosse suficientemente poderoso
para atingir seus objetivos só.
Até certo ponto, ademais, os
realistas vêem as instituições internacionais como convenientes.
Todos os realistas, sobretudo os
americanos, crêem que o melhor
modo para aumentar o poder dos
EUA seja a formação de alianças.
Mesmo Ronald Reagan [1981-89], Richard Nixon [1969-74] e
George Bush [1989-93] pensavam
dessa forma. Provas disso são as
enormes diferenças entre a Guerra do Golfo [1991] e a Guerra do
Iraque [2003] no que se refere às
instituições transnacionais.
Folha - Em sua opinião, as pessoas mais influentes no governo
não são os neoconservadores, mas
os conservadores. Por quê?
Daalder - Diferentemente do
que pensa a maioria das pessoas,
não acredito que a noção de que
Bush é uma marionete nas mãos
das forças obscuras de sua administração seja verdadeira.
Não é verdade que ele não manda nada. As pessoas que pensam
que ele não pode comandar seu
governo porque não sabe muito
estão enganadas. É errado pensar
que quem realmente controla o
governo são seus conselheiros
porque eles são muito mais cultos
e inteligentes que o presidente.
Por outro lado, os conselhos
que ele mais ouve são os dos nacionalistas autoritários [conservadores tradicionais], como Donald Rumsfeld [secretário da Defesa] e Dick Cheney [vice-presidente], não os dos imperialistas
patrióticos [neoconservadores],
como Paul Wolfowitz [subsecretário da Defesa] e Richard Perle
[do Conselho de Políticas de Defesa do Pentágono]. Afinal, Bush é
um nacionalista autoritário.
Deixe-me, por favor, explicar
esses pontos, pois eles são muito
importantes. Há uma crença natural de que você não pode ter
idéias fortes sobre determinado
assunto se não sabe muito sobre
ele. Contudo é necessário diferenciar conhecimento de crença.
Na verdade, qualquer pessoa
pode ter convicções sobre certo
tema mesmo sem conhecê-lo profundamente, visto que pode ter
opiniões fortes sobre ele. A maior
parte das pessoas que não sabem
muito tem opiniões fortes. Quanto menos elas sabem, mais fortes
são suas convicções. Ora, Bush
tem opiniões muito fortes.
Folha - Como um bom caubói?
Daalder - Como um bom conservador. Se ouvir programas de
rádio de direita nos EUA, você verá que não há necessariamente
uma relação entre convicções e
um enorme conhecimento.
Bush tem inúmeras convicções.
Estas são a pedra angular de sua
conduta internacional. Sabemos
disso porque, na visão dele, a Presidência é como uma grande empresa, na qual o presidente aponta
pessoas muito capazes para liderar suas diferentes divisões.
Assim, o presidente tem assessores de alto nível e confia no conhecimento deles. Em parte, isso
ocorre porque ele não quer perder o tempo necessário para
aprender. Os secretários e subsecretários fornecem as informações, mas as decisões são tomadas
por Bush, como numa grande
empresa. Ele ouve as diferentes
opiniões de seus assessores e decide com base nisso.
Ademais, ele já mostrou, algumas vezes, que manda no governo. No início de 2001, ele mostrou
isso a Rumsfeld ao dizer que não
aumentaria os gastos militares.
Recentemente, voltou a fazê-lo ao
tirar do Pentágono o controle da
administração iraquiana.
Bush também já mostrou isso a
Colin Powell [secretário de Estado] algumas vezes. Um dos casos
mais dramáticos também ocorreu
no início de 2001, quando ele disse
a seu secretário que não concordava com sua visão sobre a questão norte-coreana.
Cheney tentou tornar-se o principal personagem das relações entre as diferentes agências governamentais americanas, porém jamais conseguiu convencer o presidente de que isso seria positivo e
não pôde atingir seu objetivo.
Folha - E quanto às diferentes
fontes de influência existentes no
governo americano?
Daalder - Às vezes, as pessoas
tendem a acreditar que todos os
partidários da linha dura sejam
neoconservadores, mas isso não é
verdade. Há dois tipos de linha
dura em Washington atualmente:
a dos neoconservadores, que
Lindsay e eu classificamos de imperialistas democráticos, e a dos
nacionalistas autoritários.
Há uma diferença básica entre
os dois tipos. Os neoconservadores crêem que a América só possa
ser segura se o restante do planeta
for reformado, tendo como base a
imagem dos EUA. Para eles, o
propósito do uso do poder é buscar tornar os outros mais parecidos com os americanos.
Já os nacionalistas autoritários
acreditam que, para fazer da
América um lugar mais seguro,
seja necessário derrotar seus inimigos, cuidando das ameaças
existentes na cena internacional.
Assim, ambas as correntes eram
favoráveis à deposição de Saddam
Hussein, mas por razões diferentes. Os neoconservadores pensavam que isso fosse essencial porque seria o primeiro passo para
tornar o Iraque um exemplo de
democracia no Oriente Médio, o
que, mais tarde, permitiria uma
mudança do cenário político de
toda a região. Eis a teoria do dominó preconizada por Wolfowitz.
Já os nacionalistas autoritários
argumentavam que a queda de
Saddam era necessária porque,
enquanto ele estivesse no poder,
suas armas de destruição em massa e seu envolvimento com terroristas constituiriam uma ameaça
à segurança dos EUA.
Folha - Eles realmente acreditavam que Saddam dispusesse de armas de destruição em massa e tivesse contato com terroristas?
Daalder - Sim. Há alguns meses,
o presidente adotou a retórica dos
imperialistas democráticos, mas
isso ocorreu sobretudo porque
essas armas ainda não foram encontradas. Porém essa não foi a
razão pela qual os EUA entraram
em guerra com o Iraque. Além
disso, se realmente queria democratizar o Iraque, Bush escolheu
os piores métodos para fazê-lo.
Afinal, com base nas decisões
anunciadas nas últimas duas semanas, os EUA devolverão o poder aos iraquianos prematuramente e reduzirão sua presença
militar no país. Isso poderá tornar
o Iraque um país soberano, entretanto nem de longe o transformará num Estado democrático.
Folha - Respeitando as particularidades locais, o perigo seria transformá-lo num novo Afeganistão?
Daalder - Sem dúvida, o país poderia transformar-se num novo
Afeganistão ou numa espécie de
Egito, o que, em nenhum dos casos, seria democrático. Curiosamente, no que diz respeito ao Iraque, quem são os maiores críticos
do governo hoje? São os neoconservadores: William Kristol, do
"Weekly Standard" [revista neoconservadora], e Robert Kagan.
Para eles, Bush está se tornando
uma vítima das idéias de Rumsfeld sobre o Iraque. Na verdade, a
operação realizada no Afeganistão é muito mais próxima das
idéias dos nacionalistas autoritários. Hoje existe um debate entre
as duas correntes para saber se a
solução para o Iraque seria o modelo afegão, no qual os EUA só se
ocupam do terrorismo e de eventuais levantes -deixando o restante do país para seus habitantes
e para a comunidade internacional-, ou o modelo alemão.
Neste os EUA seriam obrigados
a ocupar o Iraque até que a democracia estivesse enraizada em sua
sociedade, o que corresponde à
visão dos imperialistas democráticos. Tudo indica que os nacionalistas autoritários estejam vencendo essa disputa. Afinal, os americanos parecem agora estar dispostos a abrir mão da ocupação.
Folha - Mas a dimensão do desafio foi subestimada, o que forçou a
mudança de estratégia, não é?
Daalder - É verdade, porém isso
não é o mais importante. A questão central é: uma vez que o problema foi subestimado, o que fazer para resolvê-lo de uma vez por
todas? Para os neoconservadores,
seria necessário intensificar a ocupação para controlar a situação.
Para os conservadores, não. É claro que os neoconservadores são
influentes, porém sua influência
só vai até o ponto em que suas
idéias param de coincidir com as
dos nacionalistas autoritários.
Folha - Qual é o balanço que o sr.
faz dessa revolução de Bush?
Daalder - A revolução é baseada
num equivoco fundamental, já
que não leva em conta o modo como funcionam as relações internacionais. Afinal, ela tem como
base a idéia de que os EUA são
mais poderosos que o restante do
planeta e podem, portanto, agir
de modo unilateralista.
Todavia vivemos num mundo
em que o poder conta quase tanto
quanto a globalização. Assim,
precisamos de cooperação internacional para fazer da América
um lugar livre do terrorismo, para
impedir a proliferação de armas
nucleares ou para conter a propagação da Aids no planeta.
A grande tragédia dessa administração é que, pensando que o
poder americano é ilimitado, ela
acabou, paradoxalmente, minando a posição internacional dos
EUA. Afinal, estamos muito mais
envolvidos no Iraque do que estaríamos caso tivéssemos feito
alianças. Com isso, não podemos
fazer outras coisas, como lidar
com a Coréia do Norte e o Irã.
Ademais, também perdemos
poder porque não conseguimos
mais convencer os outros de que
nossas causas são legítimas. Isso
vale não apenas para o Iraque mas
também para outras questões internacionais importantes.
Folha - Se Bush não for reeleito
em 2004, o quadro será alterado?
Daalder - Sim. Aliás, mesmo
com uma vitória dos republicanos, a revolução poderá ter fim.
Afinal, ela levará o país a um
maior isolacionismo. A eleição
oporá os internacionalistas, que
consideram crucial a aproximação com outros países, aos isolacionistas, que pensam que nossos
objetivos podem ser atingidos
sem a formação de alianças.
No caso de uma vitória de Bush,
como não querem formar alianças, os republicanos acabarão forçando o país a ter uma posição
isolacionista. A noção de que a revolução neoconsevadora levaria
os EUA a Cabul, a Bagdá, a Damasco e assim por diante morreu.
Outro problema desse governo
é que ele só dá valor aos Estados e
ao poder, negligenciando o peso
dos fenômenos transnacionais.
Mas, uma vez que sua visão de
mundo está solidificada, é difícil
mudá-la. Para o governo, o 11 de
Setembro não foi uma transformação, mas uma confirmação de
que o mundo é extremamente perigoso e de que os EUA devem
cuidar de seus interesses sem levar em conta o restante do globo.
Para mim, o mesmo fato foi uma
confirmação de que a globalização também tem um lado terrível.
Folha - Bill Clinton teria reagido
de outra forma ao 11 de Setembro?
Daalder - Em relação ao Afeganistão, creio que ele tivesse agido
da mesma forma, qualquer presidente teria feito o mesmo após os
terríveis atentados de 2001. No
entanto Clinton, que entendia o
funcionamento da globalização,
teria percebido que não era possível lidar com as ameaças sem cooperação internacional.
Não tenho certeza de que ele tivesse feito a Guerra do Iraque.
Mas, mesmo que quisesse depor
Saddam manu militari, ele teria
dado mais tempo à via diplomática, reduzindo consideravelmente
os custos político e econômico da
operação no Iraque. Tudo seria
bem diferente, e, como resultado,
o desfecho seria distinto. Penso
que o mundo seria melhor atualmente se Clinton ainda pudesse
ser o presidente dos EUA.
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