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O IMPÉRIO VOTA - RETA FINAL
OLHAR BRASILEIRO
Perplexidade
MARCELO GLEISER
No dia 13 de outubro assisti ao
último dos três debates entre
George W. Bush e John Kerry, o
candidato do Partido Democrata
à Presidência dos EUA. Durante
uma hora e meia, ou melhor, quatro horas e meia, pois assisti aos
dois anteriores, me perguntei como uma pessoa com uma visão
tão distorcida da realidade pode
ser o presidente do país mais poderoso do mundo.
Moro nos EUA desde 1986, quase tempo demais. Vi o pai de
George W. levar o país à Guerra
do Golfo para expulsar Saddam
Hussein e "salvar" o Kuwait -ou
seja, garantir que seus poços de
petróleo não fossem controlados
pelo ditador iraquiano. Bush-pai
interrompeu a invasão antes de
Bagdá, resolvendo, sabiamente,
não envolver os EUA em uma
guerra que certamente seria seguida de complicada ocupação.
Sabia que isso ecoaria Vietnã. As
Nações Unidas impuseram então
sanções econômicas e supervisão
do suposto programa nuclear iraquiano.
Seu filho, George W., é produto
típico de uma família influente,
sustentado pelo pai, protegido pelo seu prestígio, que estudou em
Yale porque o pai havia sido aluno de lá, que quando se metia em
embrulhadas, como evitar a ida
ao Vietnã e problemas com álcool
e cocaína, era resgatado pelo seu
nome. Antes de ser quase empurrado ao governo do Estado do Texas, o sonho de Bush-filho era ser
supervisor dos times de beisebol
do Estado. De beisebol à Presidência dos EUA é um dos maiores
pulos já dados na história da política. Como isso ocorreu?
A resposta está no que Bush-filho fala, ou melhor, no que seus
assessores Karl Rove, Donald
Rumsfeld, John Ashcroft falam
através dele. Quando perguntaram a Bush se ele ouvia conselhos
de seu pai, respondeu que agora
ouvia apenas a um pai mais elevado, Deus.
Bush saiu de seu caos pessoal
descobrindo Jesus, transformando-se em um evangélico radical.
Entrou no chamado Cinturão da
Bíblia, a região ao sul dos EUA dominada por um cristianismo intolerante e ortodoxo. Junto com
seus assessores, vem promulgando a agenda deste grupo: contra o
aborto, achando que o Estado pode decidir como uma mulher deve proceder; contra o casamento
de homossexuais, querendo impor uma emenda constitucional
proibindo o matrimônio entre
pessoas do mesmo sexo; contra a
pesquisa com células-tronco, alegando que ela tira a vida de crianças que ainda não nasceram, bloqueando o avanço da ciência nesta área; uma política ambiental
desastrosa, onde os únicos interesses defendidos são os das grandes indústrias; uma alienação política total, isolando os EUA como
nunca antes no cenário internacional; promulgando uma cruzada entre as forças do "bem" (os
evangélicos americanos) e as do
"mal" (os grupos islâmicos radicais, os países do "eixo do mal",
Irã e Coréia do Norte e quem se
opuser à sua linha política); causando uma guerra devastadora e
custosa por mais petróleo.
Os EUA são hoje dois países,
uma sociedade dividida ao meio,
liberais de um lado, conservadores do outro, vítima de uma propaganda do medo, de inseguranças e paranóias. Não podemos ter
mais quatro anos disso.
Marcelo Gleiser é professor de física
teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu" (Companhia das Letras).
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