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Crise faz argentinos reviverem ritmos identificados com o país e a inventarem trabalho, como catar papel
Tango conforta melodrama econômico
ELAINE COTTA
MARCELO BILLI
DE BUENOS AIRES
São 23h e Emilio Isaurralde, 12,
caminha pelas ruas centrais de
Buenos Aires com três de seus oito irmãos. Estão à procura de papel e papelão. Se tiverem sorte,
juntarão o suficiente para ganhar
R$ 10 por uma noite de trabalho.
Como os quatro irmãos, todas
as noites milhares de desempregados partem das cidades próximas a Buenos Aires para revirar o
lixo da capital argentina. Eles inventaram uma profissão que, há
cinco anos, não existia no país.
"Eu sou cartoneiro", diz Emilio,
feliz porque encontrou algo mais
valioso que papelão. Uma caixa
de CDs usados que, diz, pode valer mais de R$ 3.
O colapso da economia argentina deixou desempregada ou subempregada mais da metade da
população do país. O pai de Emilio, Teofilo Isaurralde, 55, deixou
a Província de Corrientes, no nordeste argentino, para viver em La
Matanza, cidade industrial da
Grande Buenos Aires.
Ele chegou a Buenos Aires na
década de 70. "Demorei três dias
para encontrar trabalho". Isaurralde era agricultor em Corrientes
e transformou-se em operário de
uma indústria química local.
Comprou casa, casou-se e, no final dos anos 80, perdeu o emprego. "Fui trabalhar de pedreiro.
Quando chegou o turco [o ex-presidente Carlos Menem, eleito em
1989], todos começaram a construir e sobrava dinheiro."
A prosperidade econômica durou pouco. Em 98, a economia argentina entrou em recessão.
Isaurralde sofreu um acidente de
carro que o imobilizou por quase
um ano. O filho mais velho conseguiu um emprego como carregador de lenha. Os demais partem
todas as noites num trem para
Buenos Aires, recolhem papel e
papelão, vendem o que conseguem já de madrugada e, às 3h ou
4h, voltam para casa. Emilio volta
mais cedo. Tem aula às 7h.
No ano passado, conta Emilio,
ele viajou à cidade de Lújan, interior de Buenos Aires. Ganhou a
viagem como prêmio por um trabalho escolar bem feito.
Todos os nove irmãos vão à escola, apesar da quase indigência
em que vive a família: a única fonte de renda fixa é um benefício para desempregados que recebem
do governo, de R$ 150.
Na escola, todos têm pelo menos uma refeição diária. Mas a assiduidade também é resultado da
insistência dos pais. A família não
é exceção. Estudo da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina) sobre o impacto da crise econômica sobre as famílias argentinas mostra que, apesar de os
chefes de família terem cortado
gastos com material escolar, a
evasão não aumentou durante os
últimos cinco anos de recessão.
Cantar para viver
A crise também abateu a classe
média. O mesmo estudo da Cepal
mostra que, em todas as faixas de
renda, a população teve de apertar os cintos: mudando hábitos de
consumo, diminuindo gastos
com educação, saúde, serviços.
Astrid Neiff, cantora lírica, 21,
uma típica argentina de classe
média, encontrou uma forma
muito particular de se adaptar à
crise. Ela chega no início da tarde
à Florida, uma movimentada rua
no centro financeiro de Buenos
Aires. Leva um gravador e alguns
CDs de óperas famosas. Canta por
uma hora. Executivos, turistas e
estudantes param para ouvir trechos da ópera Don Giovanni, de
Mozart. Um pouco atônitos, deixam alguns pesos no chapéu que
Astrid coloca em frente a uma pequena placa: "Astrid Neiff, animação de festas, aniversários,
reuniões de empresas".
Estudante de música desde os
14, Astrid quase desistiu da carreira quando, em 2000, viu seu grupo de ópera se dissolver. Trabalhou como secretária até resolver
aceitar a sugestão do marido, que
pensava que era uma boa idéia
enfrentar o público nas ruas.
"Não tinha tempo para estudar e
me sentia triste por ter de abandonar a música."
Os shows lhe garantem cerca de
R$ 40 por dia. "O meu trabalho,
diante das condições econômicas
do país, é bem pago. Ganho mais
do que meu marido, que tem um
emprego num escritório."
Ela conquistou admiradores.
Alguns surpresos, outros revoltados por "uma jovem de talento ter
de se sujeitar a isso". Para Astrid,
ser a única cantora lírica da rua
Florida garante alguma renda extra. Desde o final do ano passado,
executivos que trabalham na região a convidam para cantar em
festas e reuniões. "Com esse trabalho, faço o que gosto e tenho
tempo para estudar e me dedicar
ainda mais à música."
Cantar nas ruas também a ajudou a perder o medo do público.
Astrid diz que tinha receio de que
as pessoas simplesmente não parassem para escutá-la. Estava enganada. "O fato de você ter de inventar o repertório na hora para
fazer com que o público fique é
um aprendizado fantástico."
Dançar para viver
A menos de oito quadras de onde Astrid canta, uma pequena fila
se forma em frente a uma tradicional confeitaria de Buenos Aires. São quase 15h, e um famoso
DJ vai tocar no local. Carlos Gardel (1890-1935), o mais famoso
cantor e compositor de tangos de
Buenos Aires, domina o repertório. A Confeitaria Ideal vai deixar,
durante pelo menos cinco horas,
de ser apenas uma confeitaria antiga para se transformar numa
agitada "milonga".
Na fila, dezenas de "milongueiros" de todas as idades. Explica-se: em Buenos Aires, os salões onde se dança tango são chamados
de "milongas", os aficionados pelo ritmo argentino, "milongueiros".
As milongas foram provavelmente parte dos poucos negócios
que não sofreram com a crise econômica que destruiu 16% da economia argentina. Mais a recessão
se agravava, maior o colapso social, maior o número de pessoas
interessadas em aprender a dançar. "Parece que os argentinos
correm para o tango todas as vezes que a economia vai mal. Foi
assim na década de 80. É assim
agora", explica Sharon Hillman,
bailarina e pesquisadora americana. Sharon dança tango há mais
de sete anos e frequenta praticamente uma milonga por dia.
Nos últimos anos, os jovens argentinos passaram a se interessar
pelo ritmo. As milongas, antes
território exclusivo dos argentinos de meia-idade, começaram a
ser invadidas por adolescentes
ávidos por classes de tango. "Os
jovens estão se conectando mais
com o tango e buscando o contato
com a cultura e as origens do
país", arrisca Luis Calvo, proprietário da Niño Bien, uma das grandes milongas da cidade.
Pular
Menos sofisticadas que o tango,
as murgas -espécie de bloco carnavalesco- fizeram tanto sucesso quanto Gardel. Entre os dias 8
de fevereiro e 2 de março, mais de
cem blocos saíram às ruas de Buenos Aires. São grupos de 10 a 50
jovens, se vestem com roupas coloridas e brilhantes, saltam como
loucos, dançam como se estivessem bêbados.
Há várias versões para o surgimento das murgas. A mais popular é a de que eram bailes organizados pelos escravos. Imitavam
os bailes dos brancos, mas, como
não gostavam das roupas brancas, preferiam ternos azuis, vermelhos e amarelos.
As murgas haviam quase desaparecido. No início dos anos 90,
havia dez grupos em toda a Buenos Aires. Como o tango, elas geraram um súbito interesse nos
portenhos. Nos três primeiros
meses do ano, havia murgas em
todos os tipos de reuniões: nos
protestos dos grupos de desempregados, nas reuniões das assembléias de bairro, em festas de
casamento da classe média alta
argentina.
Ser argentino
"Por que o tango? A murga? Por
uma questão de saúde mental o
ser humano precisa se sentir parte
de algo. Nos últimos anos, estava
difícil ser argentino. Voltar a dançar tango é voltar a fazer parte de
algo. Algo argentino", diz o sociólogo Eugenio Vuidepot.
Vuidepot analisa o "despertar
argentino" com ceticismo. Ele diz
que não é a primeira vez que o
tango se transforma no "muro de
arrimo" em época de crise. "Parece que essa devoção repentina ao
tango, à murga, ao "made in Argentina" é a resposta para a nossa
incapacidade de nos organizarmos politicamente e encontrar
uma solução para a crise".
Consumir
Carmem Gomina, 36, não dança tango. Ela vive em Rio Cuarto,
cidade de 160 mil habitantes na
Província de Córdoba. Há pouco
mais de um mês, ela caminhava
pela calçada da avenida principal
da cidade, cinco sacolas nos braços. "Você acredita nisso? Parece
que nesta cidade há mais carros
que gente", dizia, apontando para
a avenida congestionada.
Era um domingo, e parecia haver carros em todas as ruas da cidade. Pessoas comprando, lojas
abertas, restaurantes cheios. A recuperação econômica argentina
parecia ter chegado antes a Rio
Cuarto. E de fato chegou. A economia local depende da agricultura. A queda do peso tornou os
produtos argentinos muito mais
baratos no exterior, e o primeiro
setor a reagir foi o agrícola.
Em Rio Cuarto, isso significou
produtores comprando máquinas e contratando trabalhadores.
O marido de Carmem, desempregado havia três anos, conseguiu
uma vaga. Ela, como muitos outros de Rio Cuarto, parecia muito
feliz em deixar a crise para trás.
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