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OPINIÃO
De pecados e crimes
ROSELI FISCHMANN
ESPECIAL PARA A FOLHA
O noticiário sobre pedofilia,
atingindo religiosos da Igreja
Católica, inclusive da alta hierarquia, traz tantos dados que
chocam, que o Vaticano publicou editorial atacando a imprensa internacional por cumprir seu papel, qual seja, o de informar. Acostumada a tratamento diferenciado, muitas vezes privilegiado, por parte da
mídia, com desvantagem para
os demais grupos religiosos, a
hierarquia católica reage de
forma hostil à impossibilidade
que teve a imprensa de postar-se como cúmplice de crimes
inaceitáveis, por omissão.
É certo que as relações das
religiões com os poderes terrenos são assunto delicado e polêmico. Investidos de aura suprahumana, para os que crêem
neste ou naquele culto, com facilidade pode ocorrer de buscarem transbordar, para o plano
meramente político, o poder
espiritual que lhes é atribuído
pela religião, como instituição
humana.
Decorre daí a facilidade de,
em nome da divindade, fazer
acordos internacionais (como a
concordata com a Santa Sé a
que se curvaram políticos do
Brasil), desenvolver articulações políticas e facilmente ganhar espaço, onde outros dependem do voto e da legitimidade. O uso do poder espiritual
para obter benesses humanas é
tanto mais perigoso, quanto
mais confunde argumentos
que invocam caridade, para alcançar privilégios materiais,
suprimindo direitos de outros.
Ao potencializar o poder espiritual pela união ao poder político, mera e complexamente
humano, a expectativa é de reunir os benefícios das duas esferas. Engendrada nas altas hierarquias, repercute em outros
níveis de forma imprevisível.
Enquanto alguns religiosos tomam o compromisso de defesa
dos direitos, outros enveredam
por caminho oposto. Copiando
a má prática humana na política, esperam a máxima visibilidade dos méritos e a completa
impunidade dos erros. Quando
ocorre alguma "escorregada",
que em outros seres humanos,
"comuns", será chamado de crime, considera-se "natural" a invisibilização e o silêncio, garantindo a impunidade, pelo desconhecimento público.
Vale lembrar que a Igreja Católica, por sua associação milenar, desde Constantino, ao poder terreno, tem digerido mal a
independência e autonomia
laica dos Estados em relação
aos cultos, processo fortalecido
a partir da Revolução Francesa
- e conseqüentemente, digere
mal a autonomia da cidadania e
a soberania do Estado.
Por ser instituição burocratizada altamente complexa, a diversidade interna da Igreja Católica lhe permite um portfólio
de exemplos de religiosos com
atuação religiosa e social impecável, para contrapor aos abusos agora denunciados. O reconhecimento do drama vivido
pelas vítimas, mesmo a indenização pecuniária, nada retira
do caráter irreversível do dano
causado a quem sofreu a violência sexual, em particular
sendo criança, que perdeu o direito à inocência, pela ação de
quem supunha ser seu guia. O
uso da autoridade como forma
privilegiada de cometer o abuso
é aviltante para as relações de
autoridade e para o próprio
sentido educativo dessas relações.
A lentidão em reconhecer os
casos de abuso e pedofilia, em
diferentes países, como o Brasil, é a outra face da moeda, que
credita à Igreja Católica o poder de a tudo julgar e tudo determinar na vida humana, inclusive interferindo em políticas públicas. É o caso das pressões sobre o 3º PNDH, para os
temas de retirada dos símbolos
religiosos de estabelecimentos
públicos, reconhecimento da
autonomia das mulheres, em
caso de aborto, e das uniões homoafetivas, incluindo adoção
de filhos. Ignora que seus fiéis,
se convictos, não serão obrigados a coisa alguma que contrarie sua doutrina, por uma lei
que se proponha como possibilidade.
Porque a lógica do interesse
público precisa pautar-se por
atender a toda a cidadania, sem
discriminação, cabendo às denominações religiosas convencer seus membros a que atendam as determinações morais
que pregam, definindo o que é
pecado, e não ao Estado, que lida apenas com o que é crime.
Quem for convicto seguirá os
ditames da religião sem titubear, ainda que as leis ofereçam
possibilidades a si vetadas pelas
normas religiosas. Se uma denominação religiosa proíbe o
álcool, não será a existência de
bares que convencerá o seu
adepto a provar da bebida.
Ao tomar conhecimento de
infratores em suas fileiras, e
imediatamente encobri-los, o
que o Vaticano reitera é sua disposição de ser soberano por sobre a ordem humana, que é plural do ponto de vista religioso e
de consciência, mesmo quando
os atos cometidos - pecados ou
não - são terrível e simplesmente enquadráveis como possíveis crimes, cabendo, pois, ao
Estado investigar e julgar, de
forma pública e transparente, o
que apenas engrandecerá a instituição religiosa por abrir-se
com coragem, prevenindo semelhantes situações.
ROSELI FISCHMANN é professora do Programa
de Pós-Graduação em Educação da USP, coordena o Núcleo de Educação em Direitos Humanos
da Faculdade de Humanidades e Direito da Universidade Metodista de São Paulo. Publicou, entre outros, o livro "Estado Laico" (Memorial da
América Latina).
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