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TRAGÉDIA HUMANA
Zilda Arns, coordenadora nacional da Pastoral da Criança, viajou ao país para ampliar ação social
"Impressiona ver angolanos em pele e osso"
PAULO DANIEL FARAH
DA REDAÇÃO
O cessar-fogo alcançado recentemente em Angola revelou uma
situação calamitosa, com imagens
e números ilustrando o desespero
da população, apesar de a trégua
na guerra civil ter aberto caminho
para a reconstrução do país.
"É impressionante ver mães secas e magras, só pele e osso, amamentando filhos secos, também
só pele e osso", afirma Zilda Arns,
fundadora e coordenadora nacional da Pastoral da Criança, que
viajou a Angola para ampliar sua
ação social e incentivar o treinamento de voluntários.
"Impressionante" é também o
adjetivo que a médica usa para
definir a luta pela sobrevivência
no país africano de língua portuguesa (herança da colonização)
onde até 500 mil pessoas correm
risco de morrer de fome, segundo
grupos de auxílio humanitário.
"Em Angola, a taxa de mortalidade infantil é de 400 por mil nascidos vivos, e a metade das nossas
crianças morre por malária", explica Zilda Arns, 67. No Brasil, é
inferior a 30 óbitos para cada mil
crianças nascidas vivas.
Apesar de seus ricos recursos
-Angola exporta mais petróleo
para os EUA que o Kuait-, boa
parte do país está em ruínas devido a quase três décadas de guerra
civil, que deixaram como legado
mais de 1 milhão de mortos.
O governo e membros da Unita
(União para a Independência Total de Angola) concordaram, no
início de abril, em pôr fim aos
combates, após a morte do líder
rebelde Jonas Savimbi.
A promessa de paz levou ao menos 80 mil rebeldes da Unita a sair
de suas bases em busca de comida
e medicamentos, além de facilitar
o acesso a áreas anteriormente
evitadas por causa da guerra.
"Vimos hospitais com leitos no
chão, cheios de doenças facilmente preveníveis", diz Zilda Arns.
Há 18 anos no Brasil, onde conta
com 155 mil voluntários e atende
mais de 1,6 milhão de crianças, a
Pastoral vem adaptando e expandindo sua experiência no próprio
país e em outros Estados da África
e da América Latina. Neste ano,
recebeu uma nova indicação para
o Prêmio Nobel da Paz.
A seguir, os principais trechos
da entrevista que Zilda Arns concedeu à Folha, por telefone, de
Luanda (capital de Angola).
Folha - Qual é o objetivo de sua
visita a Angola?
Zilda Arns - O principal é atender
a um pedido que a conferência
episcopal de Angola fez quando
nos visitou em outubro do ano
passado. Estiveram em Curitiba o
presidente da conferência e o bispo de Benguela, d. Oscar Braga.
Pediram-me que eu viesse a Angola porque estariam convencidos de que a Pastoral da Criança
seria muito adequada nesta fase
de reconstrução do país devido ao
poder mobilizador comunitário.
Eu estive em Angola em 1996.
Cheguei aqui sozinha da última
vez, tive reuniões com autoridades e treinei 17 mulheres. Hoje, na
mesma diocese [de Benguela", há
507 líderes trabalhando, além das
equipes de coordenação. Acompanhamos mais de 5.000 pessoas
lá. Em Luanda, temos 196 líderes.
Fora isso nós estamos em outras
seis dioceses.
Folha - Quantas pessoas da Pastoral da Criança atuam no país?
Arns - Pelo menos 800 pessoas, e
nós não temos muitos dados sobre as dioceses do interior.
Folha - Quantas famílias são
acompanhadas?
Arns - Mais ou menos 4.000 famílias e 6.035 crianças.
Folha - Qual a reação do governo
às ações da Pastoral?
Arns - No Ministério da Educação, por exemplo, nós solicitamos
o estudo da possibilidade de termos uma professora em cada paróquia para nos ajudar na coordenação e na capacitação das lideranças. E isso nos foi prometido.
Todos gostaram muito do material da Pastoral, mas naturalmente as fotografias e algumas coisas
da cultura precisam ser mudadas.
Folha - Vocês têm campanhas de
alfabetização no país?
Arns - A alfabetização é muito
importante, mas ela entra depois
que são consolidadas na comunidade as ações básicas de saúde.
Aqui, 70% das mulheres são analfabetas. Várias líderes da Pastoral
da Criança são muito inteligentes,
animadas, mas não sabem ler.
Naturalmente, pensamos em começar o quanto antes a alfabetização de nossas lideranças.
Em Angola, a taxa de mortalidade infantil é de 400 por mil nascidos vivos, e a metade das nossas
crianças morre por malária. Há
muito tifo também.
Folha - Há alguma campanha especial contra a malária?
Arns - O Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância] está
ajudando a Pastoral da Criança a
fazer mosquiteiros. A Pastoral coloca o inseticida e vai levando de
casa em casa. Há muito lixo, muita lata, tudo jogado na rua. A Pastoral está limpando, fazendo com
a comunidade um mutirão uma
vez por semana, limpando não só
as casas mas também as praças e
as ruas, enterrando o lixo.
Folha - Por que o índice de mortalidade infantil é tão alto?
Arns - A primeira causa de mortalidade, como lhe falei, é a malária, que tem de ser combatida. Há
um alto índice de desnutrição
também. Em Luanda, há muita
verminose e lixo. A ONU mostrou
boa vontade, gostou de nosso sistema de informação. Fazemos a
cada três meses o mapa da desnutrição. Aqui tudo está muito deficiente na parte de dados.
Folha - Segundo a ONU, 51% da
população está desnutrida...
Arns - Acredito que seja mais,
pelo menos nas comunidades que
eu visitei é mais do que isso.
Folha - Há muita verminose?
Arns - Sim, muita. Nosso pessoal
está fazendo cápsulas com ervas
para ajudar a combatê-la.
Folha - Há algum convênio com
organizações como o Unicef?
Arns - Não, mas isso vai ser feito.
Convocaram uma reunião com
ministros e organizações para ver
o que cada um pode contribuir
para o desenvolvimento da Pastoral da Criança no país. Todos eles
têm pressa porque existem milhares de pessoas sem teto, sem casa,
sem comida. Há muita doença,
muita malária. Na última vez que
eu estive aqui, em 1996, peguei
malária também. Desta vez vou
ver se peguei ou não, mas aqui todo mundo pega malária... Falta
saneamento.
Folha - Quais as principais mudanças que a sra. notou entre a última visita, em 1996, e hoje?
Arns - Eu notei muita mudança.
Em Luanda, na última vez, eu vi
muitas pessoas com traumatismos, gente aleijada nas calçadas,
arrastando-se. Agora não sei para
onde é que foram, mas a gente
acha bem mais limpa Luanda, se
bem que a periferia, onde nós temos a Pastoral, é um horror.
Folha - Por quê?
Arns - Há muita sujeira, casebres, tanta criança... É impressionante como é que podem viver.
Conheço muitas favelas no Brasil,
a condição é péssima, mas aqui é a
quantidade que assusta. São milhares. Principalmente de barro,
fator que ajuda o mosquito.
Folha - A sra. não teve nenhum tipo de problema de segurança?
Arns - Não, absolutamente nada.
Morreu o líder da Unita, acabou a
guerra. A liderança era vertical.
Acabou a cabeça, acabou tudo.
Agora eles querem se unir, e nós
temos líderes da Unita também.
Mesmo durante a guerra, a igreja era respeitada, e agora ela foi
uma grande intermediária para a
paz, com um papel fundamental
para fazer com que o povo sossegue, acredite no futuro.
Folha - A sra. acha que vai haver
uma reconciliação?
Arns - Sim, só que o povo tem
pressa. Metade das crianças não é
que não vai à escola, elas não têm
salas de aulas.
Folha - A infra-estrutura do país
está arruinada?
Arns - Realmente, as estradas são
muito ruins. Visitamos asilos de
crianças órfãs de guerra... Tudo é
muito rudimentar, inadequado.
Folha - Como a sra. avalia a ajuda
prestada pelo Brasil?
Arns - As oficinas de educação
para o trabalho estão indo bem e
estão criando autonomia. O Brasil
é amado aqui. Vi muita gente com
camiseta de Ronaldinho. No aeroporto, assistimos ao jogo contra
a Inglaterra. Quando o Brasil fez o
gol, o pessoal pulava de alegria.
Folha - Qual a situação da Aids?
Arns - Os angolanos estão sendo
orientados pelo Ministério de
Saúde do Brasil para o controle da
Aids, que aumentou muito. O diretor da OMS [Organização Mundial da Saúde] me disse que há
cinco anos eram menos de 4% as
grávidas com Aids, hoje são mais
de 8%. Isso é bastante alarmante.
Folha - A Pastoral está se expandindo na África, não?
Arns - Sim, em 1996, quando eu
vim para Angola, fui ainda a Guiné-Bissau. Visitei seis comunidades muçulmanas com as quais a
Pastoral da Criança trabalha.
Folha - E além de Guiné-Bissau?
Arns - Missionários brasileiros
implantaram a Pastoral da Criança em Moçambique. Fora da África, temos Timor Leste, e estamos
começando nas Filipinas, além
dos países da América Latina
Folha - Qual a impressão mais forte que Angola deixou na sra.?
Arns - O lado positivo foi a alegria e a esperança do povo, dos líderes comunitários na Pastoral da
Criança. Eles cantaram, dançaram e louvaram a Deus pela Pastoral. Isso me comoveu muito
porque eram centenas de mulheres que se manifestaram, expressaram assim sua fé, sua esperança
em um futuro melhor. Elas dançam e cantam maravilhosamente
bem. Os timbres acho que são os
melhores do mundo, eu nunca vi
corais populares tão lindos. Agora, sob o ponto de vista triste, impressionaram-me muito as crianças desnutridas, tanta verminose,
escolas sem cadeiras - as crianças sentam em cima de latas de
leite. As crianças brincam segurando as cadeirinhas porque, se
deixassem dentro da sala de aula,
seriam roubadas.
As crianças todas no pátio correm com as cadeirinhas, e a gente
vê que é uma luta pela sobrevivência. Por outro lado, o que me
impressionou muito foi ver mães
secas e magras, só pele e osso,
amamentando filhos secos, também só pele e osso. Vimos hospitais com leitos no chão, cheios de
doenças facilmente preveníveis. A
malária, primeira causa de morte,
é complexa, mas é combatível,
tanto que a maior parte do Brasil
está livre dela faz muitas décadas.
Por outro lado, a segunda causa
de morte é a diarréia, facilmente
prevenível com soro caseiro. Já há
cantos sobre o soro caseiro para o
pessoal saber como preparar. Pegaram muitos cantos do Brasil e
transportaram para cá.
Folha - Falta muito ainda, inclusive alimento...
Arns - Sim, há muita coisa, mas
eu sou otimista, acho que, com
paz e unindo esforços, a reconstrução do país vai ser bem mais
rápida. Estão combatendo as minas para levar o pessoal de volta
para suas terras, mas não vai ser
fácil, muitos não querem voltar.
Depois, quando a plantação fica
madura, os roubos são grandes
porque todo mundo quer sobreviver. Mal o feijão amadurece, já
roubam. Precisa realmente, muita
educação, cidadania, reconstruir
o tecido social, que foi rompido.
Em cinco anos de guerra, não só
matam pessoas mas também desestruturam valores culturais. A
igreja é fundamental e é reconhecida por todos os partidos.
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