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IRAQUE OCUPADO
Moderados, que admitem ocupação, e militantes, que estão ansiosos para fundar Estado islâmico, se confrontam
Reconstrução do país gera rixa entre xiitas
NEIL MACFARQUHAR
DO ""NEW YORK TIMES", EM NAJAF
Os clérigos que comandam a
maioria muçulmana xiita do Iraque se confrontam numa luta violenta pelo poder. Ela opõe os aiatolás mais velhos e estabelecidos,
que aconselham uma atitude de
paciência em relação à ocupação
americana, à facção mais militante, que está ansiosa para fundar
um Estado islâmico.
Os militantes são suspeitos de
serem responsáveis por uma série
de atentados violentos, incluindo
o sangrento ataque a uma mesquita ocorrido anteontem, que
matou dezenas de pessoas em Najaf (entre as quais o aiatolá Mohammed Baqer al Hakim), num
momento em que os xiitas sentem
que chegou a hora de exigir seus
direitos.
O derramamento de sangue começou em abril, com o assassinato de um clérigo jovem e destacado, Abdel Majid al Khoei, dentro
do mais sagrado santuário da cidade.
A morte de Al Khoei continua a
ser uma questão tão explosiva que
foi apenas na última segunda-feira que a polícia e a Promotoria
confirmaram, pela primeira vez
-com muita relutância-, que
12 suspeitos do crime foram detidos neste mês e que existe a previsão de fazer outras prisões.
O impasse ganha vida nas vielas
tortuosas da cidade sagrada de
Najaf, palco da disputa pela liderança da comunidade xiita do Iraque -que reúne cerca de 60%
dos 25 milhões de iraquianos.
Por um lado, estão os aiatolás
mais velhos e de nível superior,
reunidos em torno do grande aiatolá Ali al Sistani. Eles acreditam
que seja apenas questão de tempo
até que os Estados Unidos criem
no país um Estado democrático,
que os xiitas poderão dominar
pelo simples peso de sua maioria.
Por outro lado, há os adversários mais duros da ocupação americana -que apóiam Moktada al
Sadr, para quem os xiitas deveriam buscar ativamente criar um
Estado islâmico, seguindo os moldes do governo religioso do Irã.
Embora os clérigos mais jovens
não convoquem seus seguidores
para uma guerra santa declarada,
eles dão a entender que essa possibilidade existe.
Ninguém aponta diretamente
para Al Sadr, descendente de uma
longa linhagem de clérigos ilustres, mas a polícia, os promotores
e as autoridades americanas, sem
falar na população comum de Najaf, vêem seu grupo como aquele
que está por trás da violência.
""Todo o mundo já esperava que
acontecesse algo do gênero", disse o comerciante Qassim Shabbar, de Najaf, aludindo à possível
participação de Al Sadr num atentado ocorrido domingo passado,
quando uma bomba explodiu
diante da casa do aiatolá conservador Mohammed Said al Hakim
(tio do aiatolá morto anteontem),
deixando três mortos.
Algo que lança uma sombra sobre toda a discussão em torno do
poder dos xiitas é a questão do papel do Irã. Oficialmente, Teerã diz
que quer um Iraque estável e democrático, esperando que isso leve ao domínio dos xiitas.
Mas alguns líderes iraquianos
acreditam que o
Irã queira manter
os Estados Unidos ocupados
com o Iraque, para que Washington não volte sua
atenção para o
país islâmico vizinho, e que, por esse motivo, esteja
apoiando Al Sadr.
Ou, o que seria
ainda pior, Teerã
poderia apoiar os
membros remanescentes do Ansar al Islam, um
grupo terrorista
islâmico que as
autoridades americanas acreditam
que venha tramando atentados
contra interesses
ocidentais em Bagdá.
Imediatamente após o assassinato de Al Khoei, filho de um
grande aiatolá muito querido que
foi morto durante o regime de
Saddam Hussein, os moradores
de Najaf tinham medo de falar sobre o assunto.
Algumas semanas atrás, porém,
penduraram cartazes enormes
nas ruas e mencionaram abertamente a desconfiança de que Al
Sadr e seus seguidores tenham, de
alguma forma, participado do crime.
""Desgraça e humilhação aos hereges e aos assassinos", dizia um cartaz
desse tipo exposto
perto do gabinete de
Al Sadr. Moradores
de Najaf disseram
que adversários do
aiatolá se dirigiam
com cuidado até a
porta de seu gabinete,
à noite, para colar fotos de Al Khoei.
As possíveis ramificações do inquérito
sobre a morte de Al
Khoei são tão explosivas que a Promotoria e a polícia se negam a comentar o assunto, dizendo apenas que prenderam
uma dúzia de homens que teriam sido
identificados por testemunhas. Estas teriam dito que eles tinham ligação com o
crime.
O xeque Ahmed Shabani, um
dos assessores de Al Sadr, negou
que os seguidores do clérigo tenham participado de qualquer
violência.
Os setores conservadores de Najaf vêem Al Sadr e
seus seguidores
como agitadores.
A diferença entre
os dois grupos fica evidente em
qualquer evento
religioso. É tão
óbvia quanto a diferença entre frequentadores de
uma festa de música eletrônica e
pessoas que assistem a um concerto sinfônico. Os
seguidores de Al
Sadr demonstram
um fervor explosivo. Eles costumam repetir palavras de ordem
contra os Estados
Unidos, enquanto
dão pulos rítmicos e batem no
peito com suas mãos. Já os seguidores dos clérigos mais velhos,
mesmo os mais jovens entre eles,
ficam sentados calmamente em
grupos ou se colocam em pé e entoam slogans calmos, sem conotação política.
Milícia popular
Uma das propostas mais controversas de Al Sadr foi formar
uma milícia popular que, segundo seus assessores, garantiria
maior segurança nos bairros xiitas. A intenção também era que
ela atuasse como uma espécie de
polícia da moralidade, defendendo os
padrões muçulmanos de comportamento público.
""Não se trata de um
exército de desestabilização ou de enfraquecimento da segurança", disse o xeque
Mohammed Fartousi, um dos principais
assessores de Al Sadr
em Sadr City, uma favela de Bagdá -de 2
milhões de habitantes- que constitui a
maior base de apoio
de Al Sadr.
Os militantes tomam cuidado para
não provocar a ira
das forças militares
americanas. Para tanto, evitam citá-las nominalmente. No entanto a ameaça de enfrentá-las está presente em quase todas as pregações e na maioria das entrevistas que concedem.
""Não temos aviões, tanques ou
artilharia. Nossos inimigos os
têm", disse Fartousi, prometendo
que os milhares de voluntários
que estão se inscrevendo para
atuar no chamado "Exército do
Mahdi" vão defender os bairros
xiitas de qualquer ataque.
""Se chegarmos a um ponto em
que não haja mais pedras, usaremos nossos próprios corpos para
combater."
Em Najaf, clérigos mais velhos
fazem observações sarcásticas sobre a possibilidade de algum tipo
de milícia popular proteger figuras ou santuários xiitas.
Entretanto alguns comerciantes
de Bagdá temem que já tenha sido
formado algum tipo de movimento religioso clandestino e violento.
Praticamente todas as lojas da
cidade que vendem bebidas alcoólicas -comércio restrito
aos cristãos, visto
que o islã proíbe o
consumo de álcool- foram atacadas com bombas ou com granadas nos últimos
meses.
Os clérigos jovens que cercam
Al Sadr afirmam
que o álcool deve
ser proibido, mas
dizem não estar
fazendo uso de
violência para impedir que ele seja
vendido.
Oficiais das forças de ocupação
lideradas pelos
Estados Unidos
reconhecem que
nenhuma comunidade é mais influente no Iraque que a xiita.
Um alto oficial descreveu o consentimento tácito dado pelos aiatolás de mais alto nível à administração transitória do país -controlada pelas forças de ocupação- como um fator estratégico
de suma importância para a manutenção da pouca estabilidade
que existe no Iraque. ""Conservar
o apoio dos xiitas é essencial para
o êxito da coalizão", disse ele.
Os partidários de Al Sadr afirmam que a divisão entre agitadores e conservadores faz parte de
uma tradição xiita secular. ""Historicamente, ela data das duas linhagens distintas no pensamento
muçulmano e, especialmente, no
xiita", disse Shaibani, um clérigo
de 33 anos que dirige um tribunal
islâmico em Najaf, desafiando os
religiosos mais velhos.
""Existem aqueles para os quais é
preciso empreender a guerra santa em tempos de opressão, mas há
também aqueles que dizem que
devemos nos manter em silêncio
até o ressurgimento do Mahdi",
disse ele, falando do salvador xiita.
Geralmente, os xiitas não gostam de discutir suas rivalidades
internas. Altos representantes do
Conselho Supremo da Revolução
Islâmica no Iraque e do Partido
Dawa -que têm membros que
participam do Conselho de Governo do Iraque- retratam a tensão como expressão natural de
desabafo, após anos de repressão.
""Depois de 35 anos, as pessoas
só querem expressar suas idéias,
mesmo que nem sempre isso seja
feito de maneira responsável",
disse Adel Abdel Mehdi, alto representante do conselho. ""É um
sinal saudável de que os xiitas estão deixando a repressão para
trás. Temos uma comunidade
que procura encontrar seu caminho, algo que pode ser perigoso se
não estivermos unidos."
Quando indagados diretamente, os clérigos de mais alto nível
negam que exista uma cisma e
atribuem a violência a membros
do partido Baath interessados em
desestabilizar o país. Uma bandeira pendurada pelos partidários
de Al Sadr diante de seu gabinete,
na última segunda-feira, atribuiu
o atentado da véspera às forças de
ocupação lideradas pelos Estados
Unidos.
Mas os grupos xiitas mais estabelecidos pensam que táticas criminosas, como os ataques a lojas
de bebidas alcoólicas, constituem
um sinal de que os militantes são
imaturos e dificilmente vão conseguir conservar o apoio dos fiéis.
""Esse movimento infantil impõe suas idéias aos outros", disse
Ali Abdel Mehdi. ""Idéias radicais
mostram a ausência de conhecimentos ou de estudos profundos
dessas pessoas, que são adolescentes. Trata-se de pessoas que
não fizeram estudos religiosos."
Apesar disso, poucas críticas
públicas foram feitas a Al Sadr. Os
conservadores xiitas parecem não
saber exatamente como desafiá-lo, acreditando que sua popularidade entre os marginalizados
possa se tornar uma importante
base de apoio.
Fora da comunidade xiita, algumas autoridades crêem que Al
Sadr seja uma ferramenta útil. Os
militantes são um exemplo claro
da guerra santa que poderá ser
desencadeada se as forças de ocupação não cumprirem suas promessas. A questão agora é saber se
os clérigos mais velhos e respeitados conseguirão mudar a opinião das bases xiitas ou se a frustração generalizada
tornará ainda mais
atraente a perspectiva
de criação de um Estado islâmico.
Os clérigos moderados acreditam que
o antídoto mais rápido ao radicalismo
consista em oferecer
segurança, empregos
e eletricidade, coisas
que, segundo eles,
afastariam os xiitas
comuns das posições
extremistas.
""As pessoas têm
medo do caos", disse
Mohammed Hussein
al Hakim, ferido no
ataque à casa de seu
pai. Ele também foi
ameaçado algumas
semanas atrás. ""Se
conseguirem resultados concretos em pouco tempo, as forças de
ocupação impedirão os clamores
por esse tipo de ação."
Tradução de Clara Allain
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