São Paulo, segunda-feira, 26 de setembro de 2011

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NOSSA FORMA DE COMER

Do vilarejo à vinícola na África

Por BARRY BEARAK

STELLENBOSCH, África do Sul - Quando Ntsiki Biyela ganhou uma bolsa para estudar vinicultura na Universidade de Stellenbosch, em 1998, a escolha dela foi pouco comum. Ela tinha crescido entre as colinas ondulantes de Zululand, em um vilarejo de choças e barracos. As pessoas cultivavam suas hortas de abóboras e milho. A única bebida alcoólica que consumiam era a cerveja caseira, feita com malte.
Biyela nunca tinha tomado vinho, nem conhecia ninguém que tivesse. Sua escolha de curso foi feita por mero acaso. Uma companhia aérea, interessada em promover a diversidade, ofereceu pagar seu curso se ela estudasse viticultura e enologia -uvas e vinho. "O que é vinho?" se perguntou a moça, imaginando que fosse outro nome para designar a sidra.
Ela nunca antes tinha saído da província oriental de KwaZulu Natal, mas atravessou a África do Sul para chegar à região vinícola da Cidade do Cabo. Contemplou as montanhas imensas. Ficou perplexa com as árvores baixinhas e finas, plantadas em fileiras. Não fazia ideia do que eram.
Finalmente Biyela experimentou a bebida que viera de tão longe para estudar. Ela e alguns outros estudantes negros tiveram uma reunião com um conhecedor de vinhos, Jabulani Ntshangase. Ele abriu uma garrafa de vinho tinto, levou a rolha úmida em direção ao nariz e falou em tom extasiado sobre a cor, o aroma e o aspecto frutado do vinho. Quando recebeu o cálice elegante, Biyela esperava saborear algo sublime. Mas o que sentiu foi aversão.
Hoje, tendo adaptado seus gostos, Biyela é uma das pouco vinicultoras negras da África do Sul. Os vinhos que produz, um misto de merlot, cabernet sauvignon e pinotage, já lhe valeram medalhas de ouro e classificações de quatro estrelas. Em 2009 ela recebeu o título de Vinicultora do Ano da África do Sul.
"Depois, me apaixonei pelo teor do vinho, que muda sempre", ela explicou. "O vinho nunca é igual hoje ao que será amanhã."
Embora o apartheid tenha acabado, a África do Sul ainda é uma sociedade racialmente dividida. "Vivo em dois mundos", disse Biyela. "Ainda posso me enquadrar perfeitamente no vilarejo, falando zulu e comendo mistura. Também me enquadro no mundo de estilo europeu."
A África do Sul é regularmente incluída entre os dez maiores países produtores de vinho do mundo, mas tem muito mais vinho que consumidores. Mais de metade de sua produção é exportada.
Ntsiki Biyela, que tem 33 anos, foi criada por sua avó no vilarejo de Kwa Nondlovu. Como as outras meninas, ela buscava água do rio todos os dias. Caminhava 11 quilômetros até uma floresta para pegar lenha. Estudou numa escola rural mal equipada.
Na Universidade de Stellenbosch, situada na região vinícola, quase todo o mundo falava africâner. Biyela não entendia uma palavra.
Quando Biyela se formou, foi contratada como vinicultora pela Stellekaya, uma vinícola especializada em Stellenbosch. O primeiro vinho tinto dela recebeu uma medalha de ouro no prestigioso prêmio Michelangelo. A maioria dos outros negros na cerimônia eram garçons. Eles explodiram em aplausos a ela.
Biyela fala de seu ofício sem superlativos. "Muito bom" é seu elogio favorito. Ela se diverte com o jargão dos aficionados por vinhos. Em uma degustação, ouviu os connoisseurs detectarem sabores complexos.
"Um deles diz 'percebo vestígios de cassis', e outro fala 'sinto o aroma de trufas'", recordou. "Acho que eu não deveria ter feito isso, mas falei que eu sentia o cheiro de estrume de vaca." Biyela não usou essas palavras para desagradar. No seu vilarejo, o estrume de vaca é usado para fazer pisos e paredes. "É um cheiro da minha infância. Não cresci comendo trufas."


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