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OMBUDSMAN
Nós e a purgação do "Times"
BERNARDO AJZENBERG
O diário norte-americano
"The New York Times"
anunciou na quarta-feira a criação do cargo de ombudsman,
após três meses de uma aberta
auto-dissecação deflagrada pelo
caso Jayson Blair, o célebre repórter-inventor que deixou o
jornal mais influente do mundo
no início de maio.
Trata-se da medida mais vistosa de uma série de reformulações internas sugeridas pela comissão que esquadrinhou as
causas do vergonhoso "affair", a
organização e o funcionamento
da Redação do "Times".
A íntegra do relatório elaborado por esse grupo (25 jornalistas
do "Times" e três de fora, estes
últimos dedicados especialmente
a investigar as falhas que possibilitaram o escândalo Blair),
com quase cem páginas e apresentação feita pelo novo diretor
de Redação, Bill Keller, foi disponibilizada no site da companhia
(www.nytco.com).
Durante décadas, houve forte
resistência naquele diário à
idéia de ter um "representante
dos leitores", sob o argumento,
principalmente, de que deve caber apenas aos editores -responsáveis pelas seções do jornal- o relacionamento com o
público e a vigilância sobre a sua
própria produção.
A comissão concluiu, porém,
que, após o caso Blair e seus vários desdobramentos (dentre
eles, a saída de um outro repórter envolvido em fraude e a queda da dupla que comandava o
jornal), faz-se obrigatória uma
"dramática demonstração de
nossa abertura para a responsabilização pública".
O principal alicerce de qualquer veículo de informação de
qualidade que se queira sério, ou
seja, a credibilidade, fora colocado profunda e ineditamente em
xeque.
A partir daí, o raciocínio é de
que se tornou imperioso prestar
contas efetivamente, de modo
sistemático e escancarado, à sociedade, abrindo-se, ao mesmo
tempo, para ouvir o que ela tem
a dizer sobre o conteúdo daquilo
que é publicado a cada dia pelo
jornal.
O ombudsman, no "Times",
informou Bill Keller, será chamado de "editor público".
Outras medidas
O jornal anunciou, também, a
criação de um cargo de alta chefia dedicado à supervisão da
aplicação dos padrões jornalísticos, uma espécie de guardião da
qualidade encarregado de cuidar de programas de treinamento em ética, legislação e técnicas
jornalísticas e de observar se são
feitas e publicadas adequadamente, quando preciso, as correções de erros detectados nas reportagens.
Criou, ainda, um cargo de editor voltado para o recrutamento
e desenvolvimento de carreiras,
ao qual caberá reformular o sistema de contratações, promoções e a política de treinamento e
reciclagem dos profissionais.
O "Times" informou também
que vai reajustar sua política de
definição dos créditos dados às
reportagens; rever critérios para
poder reduzir a quantidade de
informações em "off" (com base
em fontes anônimas); mudar a
forma de relacionamento entre a
sede em Nova York e a principal
sucursal, Washington; incrementar mecanismos que fomentem o diálogo vertical e horizontal entre os jornalistas; assegurar
a implementação de um sistema
de metas e de avaliação individuais; criar uma "ampla matriz
de reuniões" para gerar um
"permanente clima de discussão
e colaboração" formal e informal na Redação.
Por fim, na quinta-feira (31), o
"Times" divulgou que, em vez de
simplesmente substituir o secretário de Redação (segundo na
hierarquia) que se demitira em
junho na esteira do caso Blair,
desmembrará a função em dois,
com um secretário priorizando a
produção de notícias e o outro,
as operações de fechamento de
cada edição.
A lista de medidas, como se vê,
é extensa. Implica mudanças
profundas e dolorosas numa instituição de 150 anos. Se elas serão realmente postas em prática
e terão, de fato, êxito, ou se refletem apenas uma reação de
quem sangra em público ou redundarão em mero marketing,
não sabemos.
Mas, não por acaso, o relatório
afirma que "a história de Jayson
Blair já não era mais apenas sobre ele, e talvez nem mesmo
principalmente sobre ele".
Reflexão
Indo além: algum estudante de
jornalismo, pesquisador, professor, jornalista ou leitor acha que
tudo isso diz respeito apenas ao
principal jornal dos EUA?
Sempre me perguntam, em palestras, por que tão poucos veículos de comunicação possuem um
ombudsman, profissional com
"cara exposta", nome e sobrenome, sempre acessível, encarregado de fazer a crítica pública e independente do jornal, ouvir as
queixas e sugestões dos leitores,
encaminhá-las e zelar por sua
correta apreciação.
Com efeito, eles são apenas cerca de 30 nos EUA e não atingem
uma centena no mundo todo.
Dentre outros motivos, costumo destacar, em minha resposta,
que falta à maioria dos veículos,
aqui e lá fora, a coragem para
reconhecer, com transparência,
de modo aberto e permanente, o
fato incontestável de que os jornalistas e a imprensa como um
todo não são infalíveis -e de
que, num jornal diário, eles não
são infalíveis diariamente.
Parece simples e pouco, mas,
na prática, é muito arriscado e
difícil.
É provável e desejável que o
histórico gesto do "Times" (um
jornal com século e meio de densa história), fruto de uma ampla
reflexão -e também, registre-se, de certa dose justificável de
desespero na luta pela sobrevivência- faça órgãos de comunicação do mundo todo revisarem
seus procedimentos ou ao menos
refletirem, mais uma vez, no assunto.
A Folha tem ombudsman desde
1989, atuando com autonomia e
independência, coluna pública
semanal e críticas diárias internas. Publica a seção "Erramos"
desde 1991.
Desde 1988, aplica um Programa de Treinamento rígido com
vistas a recrutar profissionais de
qualidade. Organiza seminários
internos regularmente e oferece
a seus profissionais subsídios para reciclagem.
Possui há muitos anos programa de correspondentes-bolsistas
no exterior, metas e avaliações
individuais, medições de produtividade e controle detalhado de
erros.
A partir de 1996, instituiu formalmente um Programa de
Qualidade voltado para vigiar a
aplicação de seus princípios jornalísticos, consolidados no "Novo Manual da Redação".
Tudo isso constitui uma estrutura e uma cultura louváveis de
prevenção, filtragem e correção
de erros da qual o jornal -assim como os seus profissionais e
os seus leitores- só tem de se orgulhar.
Mas nada disso o torna totalmente imune a falhas, mesmo a
grandes e graves falhas.
O relatório do "Times", surpreendente na sua profundidade
e transparência, rico no detalhamento de imperfeições em procedimentos internos de uma Redação de porte, repleto de sugestões
concretas, deveria servir como
"gancho" e instrumento para cada repórter, redator ou editor e
para a Folha, no seu conjunto,
voltarem a examinar abertamente seu "modus operandi" ou,
no mínimo, alguns de seus aspectos.
Defeitos irmãos que o êxito
costuma projetar, a arrogância e
a acomodação serão sempre, em
toda parte, fatores propícios à
frutificação de casos -individuais ou coletivos, mais ou menos graves ou contundentes-
como aquele que já martirizou
historicamente e que continua a
afligir um ícone do jornalismo
sério, independente e responsável chamado "The New York Times".
PS: Peço desculpas ao leitor da
coluna por oferecer hoje um texto excepcionalmente longo e detalhado. Julguei, no entanto, que
o tema o exigia. Não dá para
imaginar que estejamos falando,
aqui, apenas de um jornal norte-americano, certo?
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Bernardo Ajzenberg é o ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato
de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade
por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor
-recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário
dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Bernardo Ajzenberg/ombudsman,
ou pelo fax (011) 224-3895.
Endereço eletrônico: ombudsman@uol.com.br. |
Contatos telefônicos:
ligue (0800) 15-9000; se deixar recado na secretária eletrônica, informe telefone de contato no horário de atendimento, entre 14h e 18h, de segunda a sexta-feira. |
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