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OMBUDSMAN
A pulga sumiu
BERNARDO AJZENBERG
A indústria automobilística passa por uma situação
difícil. Pátios lotados, trabalhadores descontentes, ameaçados
de desemprego -como ocorre,
de resto, em inúmeros setores.
Seria natural, portanto, que procurasse reagir.
Além de um plano de demissões e de negociações com sindicatos, o segmento realizou na última semana de outubro, capitaneado pela General Motors, uma
promoção de vendas "inédita",
para "desovar" estoques.
Nessa empreitada, contou com
um forte aliado, que lhe poupou
muitos gastos com publicidade:
os meios de comunicação.
Curioso paradoxo, já que, como se sabe, a imprensa vive, em
grande parte, de anúncios.
Como um coral bem ensaiado,
os jornais do dia 25 noticiaram a
campanha "Chevrolet zero com
juros zero" em suas páginas editoriais (veja o quadro ao lado),
informando que daquele dia até
o fim do mês quem comprasse
um carro em 12 meses com entrada de 35% não teria juros cobrados nesse financiamento.
A Folha entrou na dança sem
ressalvas, com um texto ingenuamente categórico, para não
dizer entusiasmado, sem nenhuma condicionante, próximo do
publicitário.
"A General Motors vai vender
carros novos a prazo sem cobrar
juros", começava a reportagem.
E os verbos se sucediam afirmativos, no futuro do presente, sem
titubeios: "o consumidor comprará...", "...pagará..." etc.
O noticiário revestiu-se, até
mesmo, de um tom patriótico
(não por acaso, já que a campanha da GM se baseou na realizada após os atentados de 11 de setembro pela sua sede norte-americana, intitulada, veja só, "Keep
America Rolling").
"Estamos num clima de expectativa, de esperar o que vai acontecer, que não leva a nada", disse
José Carlos Pinheiro Neto, vice-presidente da GM, que, solenemente, apresentou a campanha
a ministros da área econômica.
"Lançamos essa campanha
porque queremos movimentar o
mercado e injetar ânimo na economia", concluiu.
No dia seguinte, notícias davam conta de iniciativas semelhantes de outras montadoras
(Fiat, Ford, Volkswagen).
Juros embutidos
Eis que na edição do dia 31,
quarta-feira passada, o último
da promoção, a Folha traz reportagem com o título "Carro
zero "sem juros" pode enganar".
Êpa! Como assim?
Pois nessa reportagem, baseada em pesquisa da agência especializada "AutoInforme", o jornal afirmava que, na prática, devido à cobrança de diferentes valores nas vendas a prazo e à vista, algumas concessionárias estavam "embutindo juros no preço da venda a prazo", mesmo na
promoção dos 12 meses.
Taxas menores do que a média
de mercado, é verdade, mas, de
todo modo, acima de zero.
Ou seja, havia promoção, preços reduzidos, mas a coisa não
era bem como a noticiada uma
semana antes em coro pela imprensa. As montadoras, no texto,
negam a artimanha.
Mas, até aí, quantos consumidores/leitores não teriam sido levados a fazer uma compra
achando que era uma coisa
quando era, na verdade, outra?
O jornal não tem responsabilidade nisso, ao divulgar uma promoção com ares crédulos, cegamente, como se Papai Noel realmente existisse?
Qualquer que seja o lado com
razão (montadoras ou agência),
o fato a destacar é que os jornais,
no dia 25, compraram a informação da empresa sem nenhum
ceticismo, sem programar checagens imediatas da aplicação do
prometido, sem alertar seus leitores para que ficassem com a
pulga atrás da orelha.
Esta teria sido a atitude correta da imprensa: ficar ela própria
com a pulga atrás da orelha.
"Quando soube da promoção,
desconfiei de cara, pensei que alguma coisa diferente poderia estar por trás da propaganda", disse ao ombudsman o diretor da
"AutoInforme", Joel Leite.
"Como é que você pode financiar alguma coisa com juro zero?
Ninguém paga para trabalhar",
afirma o jornalista.
Tratamento
A questão que esse caso coloca,
para os jornais, é como lidar com
uma informação coletiva proveniente de uma fonte cuja natureza é produzir e cujo objetivo final é vender, lucrar.
Esse tratamento requer filtragem, reticências, conferência, interrogações.
Pode-se argumentar que, ao
dar a notícia da promoção, presta-se um serviço ao leitor/consumidor, além de registrar um fato
sintomático da situação econômica de um setor e do país.
Concordo com a segunda parte, mas, quanto à primeira, o
verdadeiro serviço teria sido outro: despertar a pulga atrás da
orelha, averiguar de imediato, se
possível in loco, o que a realidade da movimentação nas concessionárias apresentava.
Jornal não é correia de transmissão -para usar um velho
jargão- da indústria automobilística ou de outra qualquer.
Seu cliente, no noticiário, é o
leitor. As páginas de publicidade, essas sim -sempre bem-vindas, aliás-, existem para atender aos anunciantes.
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Bernardo Ajzenberg é o ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato
de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade
por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor
-recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário
dos meios de comunicação.
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