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OMBUDSMAN
Jogralismo
BERNARDO AJZENBERG
O que bolam Bill Gates e
seus assessores quando querem lançar um novo produto da
Microsoft, uma atualização do
Windows, por exemplo?
Montam uma conferência de
porte internacional, reunindo
jornalistas do mundo todo,
grande parte com passagem paga pela empresa americana.
Gates sobe num palquinho e,
com auxílio da mais sofisticada
e pirotécnica tecnologia audiovisual, apresenta o seu show.
No mesmo dia, pelas rádios,
internet e TVs, ou no dia seguinte, pelos jornais, a população
consumidora do planeta fica sabendo da novidade.
Não se trata de publicidade,
veja bem. O que Gates fez, nesse
exemplo, foi "apenas" uma
apresentação.
Pergunto: alguém tem dúvida
de que essa primeira repercussão
mundial do novo produto custaria não se sabe quantas vezes
mais se fosse feita na forma de
propaganda? E teria, acrescento,
a mesma eficácia?
Mas a pergunta que mais cabe
aqui é outra:
Por que toda a imprensa acorre, como que fisgada por um ímã
irresistível, a um chamado de
Bill Gates, direta ou indiretamente (por intermédio de agências de notícias)?
Há uma lógica dominante nos
meios de comunicação, no mundo todo, estupendamente explorada pelos mercados.
É a lógica do espetáculo, a roda de fogo da corrida para ver
quem chega primeiro. Na realidade, a corrida louca de todos
contra todos para que todos cheguem juntos ao evento e possam,
cada um, levar a "indispensável"
informação a seus consumidores.
Essa febre contamina todas as
áreas do jornalismo, todos os
mercados que o entornam e dos
quais, no fundo, a própria imprensa participa -inclusive um
que, bem mais do que os outros,
poderia e deveria estar protegido, digamos, resguardado: a atividade cultural e sua cobertura,
objeto, hoje, desta coluna.
Discurso preparado
Na última quarta-feira, todos
os jornais importantes do país
trouxeram extenso material registrando o lançamento do novo
CD de Gal Costa.
Obedientemente, os jornalistas
haviam comparecido a um encontro num hotel do Rio, na segunda-feira, submetendo-se ao
ritual de ouvir a diva baiana, a
qual, meses antes, posara com
Antonio Carlos Magalhães para
lhe prestar apoio no torvelinho
do caso do painel do Senado que
o levaria à renúncia.
A leitura das reportagens produzidas a partir desse evento
mostra que Gal Costa fora para
lá com um discurso decorado,
previamente acertado: seu apoio
a ACM teve caráter moral, não
político.
Foi esse o bordão que os repórteres ouviram, e registraram.
Veja alguns títulos:
"Entre o amor e a política"
(Folha);
"Amorosa e patrulhada"
("Globo");
"Suave e magoada" ("Jornal
do Brasil");
"O amor e a patrulha" ("Correio Braziliense").
Em comportamento que mais
se assemelha a um jogral, a imprensa toda destacou o lançamento do CD, adiado por dois
meses justamente por causa do
apoio outorgado por Gal a ACM.
E reproduziu, devidamente, a
neste caso improvável separação
entre moral e política elaborada
pela cantora.
Espetáculo
Lógico: Gal é um mito, patrimônio nacional, fora de toda e
qualquer suspeita...
Tudo isso pode ser verdade,
mas há algo que os jornais não
conseguiram esconder: o novo
disco, dizem as críticas, deixa
bastante a desejar.
E aí se volta ao essencial: se
desta vez o disco, que é o que interessa, não saiu grande coisa
-o que pode acontecer com
qualquer artista, por melhor que
ele seja- , por que tanta propagação? Por que tanto espaço?
Resposta: por causa do apoio a
ACM (afinal, era a primeira vez
que a imprensa tinha acesso à
cantora desde o seu gesto político).
Outra pergunta: por que não
enfatizar nos textos e títulos, acima de tudo, a fragilidade artística que existiria, então, nesse novo trabalho, mantendo, ainda
assim, o respeito que Gal Costa
merece?
Resposta: porque o "evento",
no fundo, se tem a ver com cultura, tem a ver muito mais com o
impacto jornalístico do espetacular, da folia uníssona das reincidentes celebrações e consagrações. Tem a ver com a lógica do
espalhafato.
Bombardeada meses atrás, na
ocasião do Pelourinho, Gal
aguardou o momento e articulou a "grande volta".
E não é difícil imaginar qual
poderá ter sido ao menos um dos
raciocínios dos que trabalham
na indústria fonográfica: os ânimos agora esfriaram o bastante
para atenuar possíveis ataques
emocionais, mas não o suficiente
para esgotar a curiosidade midiática de ouvi-la. Dessa forma,
propicia-se duplamente o reforço, portanto, da mais ampla divulgação, grátis, para o novo disco.
Seria maquiavélico demais
imaginar que a máquina de divulgação possa ter aproveitado o
"lado ACM" do lançamento com
propósitos diversionistas, antevendo que, caso não o fizesse,
uma visão quem sabe crítica da
obra em si poderia prevalecer.
Mas que os divulgadores, assessores e marketeiros sabem
trabalhar, ah, como sabem. Fazem o seu papel, é bom que se diga. Eles e Gal.
A pergunta é outra: que papel
cabe, aqui, ao jornalismo?
Antes de procurar respondê-la,
impõe-se registrar que o "Jornal
da Tarde", de São Paulo, publicou na mesma quarta-feira uma
entrevista excepcional, na qual a
cantora se viu obrigada a falar
mais, a expor seus pensamentos
para além do bordão planejado,
até a questionar as indagações
do próprio entrevistador.
A Folha bem que tentou fazer
algo semelhante, em busca de
uma diferenciação, ao escalar o
diretor teatral Gerald Thomas
para entrevistar a intérprete.
Mas Thomas, como se sabe,
não é jornalista e não se "presta
ao papel". O que ele fez foi registrar uma conversa entre amigos,
na qual o "entrevistador" até
mesmo ironiza o próprio jornal,
dizendo ter uma "recomendação" para perguntar sobre a
questão ACM. Certamente não
saiu o que a Ilustrada podia esperar.
Impasse
Voltando à pergunta acima.
"Buscamos ao máximo fazer
reportagens exclusivas e manter
uma postura crítica na cobertura dos eventos", explica Nelson
de Sá, editor do caderno. "Mas,
por outro lado, notícia é notícia,
não podemos brigar com ela. Assim como não podemos ignorar
a indústria cultural."
Para um jornal que se quer
consistente no terreno cultural e
de entretenimento, a discussão
está justamente aí.
Qual é o lugar do "furo" nesse
campo? Como definir os limites
da instrumentalização dos cadernos culturais pela indústria
fonográfica ou cinematográfica,
para ficar nos exemplos mais poderosos desse mercado?
O que, nele, é realmente notícia, e não astuciosa e orquestrada plantação, propaganda indireta? Qual é a diferença entre
serviço ao leitor e notícia?
O exemplo desse lançamento
de Gal Costa mostra, mais uma
vez, que há um impasse evidente
no chamado jornalismo cultural, gerado pela pressão da mercantilização generalizada das
artes e pelas dificuldades que os
meios de comunicação que se
querem sérios enfrentam para
encará-la.
Um círculo vicioso que só será
rompido com o rechaço à complacência e ao comodismo, o repúdio à inércia e, sobretudo,
muito debate e ousadia.
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Bernardo Ajzenberg é o ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato
de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade
por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor
-recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário
dos meios de comunicação.
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