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OMBUDSMAN
Onde (não) canta o sabiá
BERNARDO AJZENBERG
Não deu nem tempo de festejar a boa performance da Folha na cobertura da Copa do Mundo, já comentada parcialmente aqui e em críticas internas. Uma sequência de erros tão
graves quanto evitáveis expôs o jornal, semana passada, a um vexame.
Foi na reportagem publicada
domingo sobre o projeto urbanístico que, entre outras coisas,
está lotando de palmeiras o canteiro central da célebre avenida
Faria Lima, em região nobre de São
Paulo.
Título do texto principal, na
capa do caderno Cotidiano:
"Marta compra planta até 5 vezes mais cara".
Revelação central: pesquisa feita pelo jornal mostrava que a
Emurb, autarquia responsável
pelo projeto, adquirira plantas por valores bem acima do mercado. Acusação pesada.
Na quinta-feira, a retratação,
em reportagem na página 4 do
mesmo caderno: "Marta não pagou mais por palmeiras".
Explicação em dois tempos:
1) Em vez de pesquisar os preços com base no tamanho do tronco das árvores, como
estava no edital de licitação, o
jornal o fez a partir do tamanho
total das plantas, incluindo tronco, palmito e copa;
2) De modo equivocado, os cálculos
realizados pela reportagem consideraram os valores constantes
no edital como se eles tivessem
sido os efetivamente pagos pela
mercadoria, quando eles, na verdade, servem de referência para
que as empresas interessadas façam suas propostas.
No texto de retificação, o jornal
admitia, então, que em certo caso a administração municipal "conseguiu
comprar palmeiras imperiais
por um preço 41,5% inferior ao
estabelecido no edital".
Raiz
Feita a correção, registrado o
vexame, cabe a pergunta óbvia:
onde reside a raiz dos erros cometidos?
Questionado pelo ombudsman
sobre isso, o editor de Cotidiano,
Nilson de Oliveira, respondeu:
"Confiança extrema nas fontes,
análise superficial da documentação e tratamento burocrático
do 'outro lado'".
Perfeito -com a ressalva de
que parece incabível que tais
equívocos possam ser cometidos
por um jornal que se vangloria de estar na vanguarda, justamente, do cumprimento desses quesitos, em especial do respeito ao chamado "outro lado".
Quanto às fontes, é princípio
básico do jornalismo que toda
informação exige que diversas delas sejam ouvidas -se possível
com tendências ou visões contraditórias-, para evitar que o veículo seja
manipulado por interesses deste
ou daquele lado, como claramente ocorreu aqui.
Sobre os aspectos técnicos, nada como um pouco de humildade (o que significa consultar o
maior número possível de especialistas e expor-lhes todos os detalhes) para poupar o jornalista
de cometer um erro crasso ou escrever bobagem.
Checar e rechecar dados é o mínimo. E esse
ônus cabe ao jornalista, não à
fonte.
Por fim, a questão do "outro
lado", sem dúvida a mais complexa e relevante neste caso.
Espaço azul
Muita gente elogia a Folha por
ser o único jornal a prever já no
seu projeto gráfico um espaço
obrigatório e diferenciado para
registrar a versão de pessoas ou
instituições postas na berlinda.
Ocorre que esse recurso, quando aplicado sem seriedade ou esquematicamente, serve
apenas para "lavar as mãos" e, em última instância, trair a verdadeira investigação jornalística. Constitui-se num auto-engano.
Não basta ouvir ou procurar
ouvir o "outro lado" e registrar
burocraticamente a sua posição
ou a tentativa de obtê-la.
Não basta a um repórter sentir-se satisfeito e aliviado por poder preencher de qualquer forma aquele espaço azulzinho previsto pelo projeto gráfico. Não é
para isso que ele foi concebido.
Menos válido ainda é o expediente, nada incomum,
de ocultar da fonte acusada as
idéias centrais da reportagem,
destacar-lhe apenas o acessório,
dar voltas, de modo a não lhe
permitir, objetivamente, uma
defesa real, não superficial ou
"burocrática". Aqui, o feitiço pode se virar contra o feiticeiro.
Ouvir o "outro lado" é parte da
apuração. É instrumento de reforço da matéria a ser produzida.
Interessa ao repórter, não para
atender simplesmente a uma determinação formal, mas para
conferir suporte ao seu trabalho.
Mais do que isso, como afirma
o "Manual" da Folha:
"O outro lado também pode levar o jornalista a refazer sua apuração, ou mesmo abandonar a
notícia, se trouxer uma informação procedente que desminta a
perspectiva inicial da reportagem". Como ser mais claro?
O caso das palmeiras é uma
evidência de que a Folha maltratou esse princípio. Tivesse
ele sido aplicado com clareza e com a devida profundidade, é óbvio que a investigação tomaria outro caminho.
O que seria melhor para o jornal: abortar uma linha de acusação atraente mas pouco sólida ou obrigar-se a uma retratação desmoralizante?
O excesso de cartas de autoridades ou instituições envolvidas
em reportagens no Painel do Leitor (roubando espaço deste último), aliás, como destaquei aqui
na coluna de 10 de março passado, é outro sintoma de como tem
sido recorrente a incompreensão
quanto ao lugar do "outro lado"
na confecção de uma reportagem.
De que adianta ter um belo manual de jornalismo se ele fica escondido no chip de um computador ou a mofar na estante?
Quem paga o pato, no fundo, é o próprio jornal (em última instância,
claro, o leitor).
É certo que a maioria dos veículos de comunicação nem sequer reconhecem, muito menos
divulgam, os erros que cometem. A transparência é, a cada
oportunidade, um parto difícil. Esse mérito a Folha teve.
Mesmo assim, alguns leitores
se queixaram, no caso das palmeiras, de que não coube à correção o mesmo espaço dado à reportagem original e de que esta
saiu num domingo (edição de
maior divulgação) enquanto
àquela se reservou uma dia de semana.
Faz sentido, mas deve-se ponderar, também, que muitas vezes
é melhor e mais transparente publicar o erro o quanto antes,
mesmo que o espaço seja menor
ou diferente -desde que para
ele se chame devidamente a
atenção.
E aqui cabe um reparo ao comportamento assumido pelo jornal.
O "Erramos" publicado quinta-feira, na página A3, o qual remete para a reportagem da correção, chega a ser patético, ao dizer: "A reportagem... continha
alguns erros...".
Alguns erros?
Ora, a reportagem errou "apenas" no mais importante. Não
foram "alguns erros", mas sim
erros cruciais. Se não tivessem sido cometidos, cairia a tese central do texto.
Além disso, a chamada da capa
da Folha nesse dia ("Prefeitura
de SP não pagou mais por palmeiras usadas em paisagismo"),
sem texto a ela acoplado, limitada a esse título, solto na página,
não faz nenhuma retificação explícita.
Basta lembrar, em contraposição, o que fez o "Agora", que reproduzira a mesma reportagem
no domingo. Na quinta, com um
texto, um título e ainda um "chapéu" que dizia "Levantamento
errado", esse jornal deixou claro,
na capa, a falha vendida aos leitores.
A própria Folha já foi mais
transparente na exposição de erros. Em 6 de fevereiro de 1998, para dar apenas
um exemplo, o título de uma
chamada, na capa, dizia sem rodeios: "Folha erra no quadro de
faltas no Congresso".
Esse espírito de absoluta exposição, além da aplicação das técnicas essenciais de apuração jornalística, só isso pode compor um antídoto capaz de reerguer a credibilidade do jornal quando ela sofre abalos como o provocado pelo caso das palmeiras.
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Bernardo Ajzenberg é o ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato
de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade
por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor
-recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário
dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Bernardo Ajzenberg/ombudsman,
ou pelo fax (011) 224-3895.
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