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OMBUDSMAN
Imprensa, crises e desafios
MARCELO BERABA
Difícil dizer se esta é a maior
crise da história das empresas
jornalísticas brasileiras. Mas é
uma crise enorme, daquelas que
parecem que nunca vão acabar,
a maior, com certeza, que a minha geração de jornalistas jamais vivenciou.
1. Os dados são conheci-
dos, mas vale resumi-los: dívidas estimadas em R$ 10 bilhões
(a maior parte em dólar), 17 mil
vagas de trabalho cortadas em
dois anos, queda de circulação
de jornais e revistas.
2. As razões de tamanha
catástrofe ainda não foram
completamente estudadas, mas
alguns elementos são visíveis. A
primeira metade da década de
90 foi de pura euforia para as
empresas de comunicação. A circulação dos jornais aumentou
ano após ano. A espiral de crescimento, alimentada pela estabilização e pelo fortalecimento da
moeda, por investimentos em
tecnologia e pelas agressivas estratégias de marketing, parecia
não ter fim. As empresas acreditaram de fato nas previsões de
crescimento econômico e se endividaram pesadamente em dólar para continuar a se expandir.
3. Em janeiro de 99, elas
foram pegas no contrapé
com a desvalorização do real e,
na seqüência, com a estagnação
da economia e a queda de renda.
As dívidas em dólar se tornaram
um pesadelo. E as principais fontes de receita ficaram comprometidas: o bolo publicitário diminuiu (e passou a ser mais disputado) e caiu o número dos que
compram em banca ou assinam
jornais e revistas.
4. As conseqüências da
crise estão expostas: economia de papel, demissões, achatamento salarial, perda de profissionais qualificados, fragilização
das Redações e retração total das
empresas. Passamos a viver parecidos com o Brasil: no sufoco
para produzir resultado (superávit) e pagar dívidas. Nada de
investimento. O estrago é visível
a olho nu.
5. Há quem diga que 2002
foi o fundo do poço e que agora as coisas começam a mudar.
De fato, o mercado publicitário
teve uma pequena reação, pequena: cresceu em 2003, descontada a inflação, 2,9% em relação
a 2002. Mas a circulação dos jornais continuou a cair: era de 7
milhões de exemplares por dia
em 2002 e em 2003 foi de 6,5 milhões por dia, uma queda de
aproximadamente 7%.
6. O que interessa aos lei-
tores de jornais é saber se a
crise afeta a qualidade do produto que recebe e sua independência editorial.
7. A maior ameaça à inde-
pendência das empresas de
comunicação está nelas mesmas.
A crise se traduz em pressões pela flexibilização dos procedimentos internos que protegem as
Redações de picaretagens e negociatas. A pressão aumenta
com a necessidade de resultados
financeiros, mas a submissão da
Redação resulta em perda de
credibilidade e de prestígio. O
barato sai caro. Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha, tocou no problema recentemente em entrevista para o site
No Mínimo. É bom que os executivos de jornais discutam isso
abertamente. Frias Filho detecta
um retrocesso: "A famosa separação entre Igreja e Estado, que é
a gíria para designar a separação entre Redação e publicidade
(...) que se cristalizou felizmente
nos principais centros urbanos
do país na segunda metade dos
anos 50 e no começo dos anos 60,
essa separação está sendo enfraquecida".
8. No capítulo indepen-
dência, também será importante acompanhar o pedido de
socorro das empresas jornalísticas ao governo federal. Algumas
das maiores procuraram o
BNDES em busca de recursos públicos para pagar dívidas, comprar papel e iniciar novos investimentos. Em tese, é legítimo, um
direito de qualquer segmento da
economia. O problema é como se
dará essa operação. Será um
desgaste grande para as empresas se houver qualquer sorte de
privilégio ou se elas se submeterem aos desígnios do governo.
Em entrevista para o site do
AOL, o publisher da Folha, Octavio Frias de Oliveira, tocou no
problema. Questionado sobre as
negociações com o banco estatal,
ele foi direto ao ponto: "Eu tenho
um receio muito grande. Isso
tende a interferir. Para falar claramente (...), o que interessa ao
governo é a mídia de joelhos.
Não uma mídia morta. Uma mídia independente não interessa
a governo nenhum. Dentro desse
princípio é difícil ver essa questão do BNDES. Por que criar um
sistema assistencial, preferencial
para os jornais, para a mídia?".
9. Qualidade. As metas de
excelência do jornal estão
definidas no seu "Manual da Redação" e no seu Projeto Editorial
de 1997, que está sendo revisado
e reescrito. Em linhas gerais, o
jornal persegue um jornalismo
crítico, moderno, pluralista e
apartidário. Esses propósitos,
que vêm desde o primeiro Projeto Editorial, de 84, não são mais
suficientes para definir um jornal que seja indispensável, confiável e prazeroso, com notícias
precisas, contextualizadas e bem
escritas, com um cardápio diversificado, instigante e inteligente.
É necessário que a Folha, para
firmar sua "singularidade e relevância", dê um salto de qualidade.
10. O tamanho da crise e
o imperativo da sobrevivência afastaram as empresas
jornalísticas e os jornalistas de
questionamentos importantes
que outros países experimentam
neste momento sobre o papel da
mídia e suas contradições. Alguns casos recentes exigem reflexão. Nos Estados Unidos, o "New
York Times" e outros colossos da
imprensa revisaram seus procedimentos de apuração por conta
da descoberta de vários casos de
fraudes jornalísticas, de reportagens simplesmente inventadas.
Ainda nos Estados Unidos e em
países da Europa, vários jornais
e redes de TV foram submetidos
à lógica do patriotismo e abandonaram a independência crítica por conta de pressões do governo ou do repúdio espontâneo
ao terrorismo e estão todos hoje
mais sujeitos às manipulações
oficiais.
11. O grande desafio da
Folha -e, de resto, de todos
os jornais- é superar a crise
(pagar suas dívidas, voltar a investir e a crescer) sem abrir mão
de duas obsessões: manter a independência crítica e dar um salto na qualidade do jornal que
entrega diariamente. O que está
em jogo é o principal patrimônio
de um jornal, a credibilidade.
O mandato de ombudsman
que ora se inicia coincide com este período complicado da imprensa brasileira. Espero ajudá-la a sair melhor e mais forte. Para isso, estou à disposição dos leitores. E que a crise nos seja breve!
REFERÊNCIAS:
Crise da mídia - na internet, ver em
www.folha.com.br/040981
"Manual da Redação: Folha de
S.Paulo" (Editora Publifolha, 2001)
Projeto Editorial de 1997 - na
internet, ver em
www.folha.com.br/040982
Entrevista de Otavio Frias Filho -
www.nominimo.com.br
Entrevista de Octavio Frias de Oliveira - www.aol.com.br
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Marcelo Beraba é o ombudsman da Folha desde 5 de abril de 2004. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Não pode ser demitido durante o exercício da função e tem estabilidade por seis meses após deixá-la. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva dos leitores, recebendo e verificando suas reclamações, e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Marcelo Beraba/ombudsman,
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