|
Índice
OMBUDSMAN
Médico, advogado, jornalista
BERNARDO AJZENBERG
Podemos não gostar, mas somos capazes de entender a
atitude de um médico que, em
meio a uma rebelião violenta
numa cadeia pública, tenta primeiro salvar o último fio de vida
de um condenado por abuso sexual contra menores para só depois cuidar de um policial ferido
com menos gravidade.
Também compreendemos que,
no fundo, é em cumprimento da
lei -a mesma que, em tese, garante proteção a todos os cidadãos- que um advogado às vezes faz uma defesa veemente de
alguém acusado de ter cometido
um crime, mesmo que este seja
dos mais graves.
Até que ponto, porém, a sociedade se dispõe ou consegue entender o papel do jornalista, especialmente em situações delicadas ou excepcionais?
Foi em torno dessa questão
que se desenvolveu uma das sessões do encontro da Organization of News Ombudsmen
(ONO), realizado em Salt Lake
City (EUA) entre 28 de abril e 1
de maio.
O raciocínio inicial fez parte
da exposição do jornalista Bill
Kovach sobre o tema "Jornalismo e Patriotismo". Autor de um
livro chamado "The Elements of
Journalism", de 2001, Kovach
defende que uma das tarefas
mais relevantes da imprensa é
justamente "educar" o público
no sentido de que este possa
compreender o lugar que ela
ocupa na circulação de idéias e
informações.
E isso, conclui, só é possível se
os veículos de comunicação conseguirem demonstrar na prática
que suas informações são confiáveis, que publicam aquilo de que
realmente têm conhecimento e
que o fazem de forma responsável -ainda que a revelação de
certos fatos possa, eventualmente, descontentar alguns ou ferir
interesses de outros.
Nos EUA, conta Kovach,
atualmente membros do governo ou militares costumam pressionar jornalistas com uma pergunta que não é exatamente nova: "O que você é em primeiro
lugar, americano ou jornalista?".
Kovach responde que essa é
uma forma inadequada de colocar o problema.
"Numa sociedade democrática", ele argumenta, "a forma
mais elevada de exercício da cidadania por parte de um jornalista é monitorar os acontecimentos na comunidade, fazer
com que o público os conheça e
esteja consciente de sua importância, examinar com ceticismo
a atuação dos governantes e das
instituições do poder, encorajar
e municiar o debate público
mais amplo."
Durante os debates na ONO, o
ombudsman do jornal "The
Washington Post", Michael Getler, foi radical: "Devemos publicar tudo o que sabemos, inclusive em tempos de guerra, salvo se
claramente a divulgação puder
colocar vidas em perigo. Quanto
mais informação, melhor".
Para ele, essa é a única forma
de o jornalismo contribuir com
seriedade para a formação de
uma opinião pública viva e vigorosa.
Claro que o tema é especialmente "quente", no momento,
para os jornais dos EUA (desde
os ataques do 11 de setembro) ou
de Israel, por exemplo, no atual
conflito -mas os princípios
aqui resumidos são obviamente
válidos para toda e qualquer sociedade.
O Brasil não está em guerra,
mas quem seria capaz de negar
que -preservados o pluralismo,
a busca do equilíbrio e da imparcialidade- a aplicação desses "elementos", pela imprensa
local, seja essencial para que os
leitores possam formar sua opinião, por exemplo, durante uma
campanha eleitoral?
"Devemos sempre expor a verdade dos fatos", defende Kovach,
"mesmo que isso seja visto ou
usado por um lado ou pelo outro. Não importa. Não somos nós
os eleitores. Temos que ser claros
com o leitor e lhe fornecer os elementos. Ele é quem decide o que
fazer com as informações. Nossa
obrigação é divulgá-las."
Suicídio
Entre outros assuntos -censura em tempo de guerra, uso de
imagens "chocantes", crescimento da leitura de jornais on-line,
para citar alguns-, os ombudsmans discutiram, também,
orientações específicas para a cobertura de casos de suicídio em
suas várias vertentes (no caso de
celebridades, no caso de homicídio seguido de suicídio etc.).
Uma das observações feitas
por Kathleen Hall Jamieson, estudiosa da Universidade da Pensilvânia, expositora da sessão:
"Dramatizar o impacto do suicídio por meio de descrições e fotos de parentes enlutados, professores ou colegas de classe ou
expressões comunitárias de luto
pode encorajar vítimas potenciais a verem o suicídio como um
meio de atrair atenção para si
ou como uma forma de retaliação contra outras pessoas".
Objetivo desse debate? Trata-se não apenas de retratar os
eventos, mas também de editá-los adequadamente, contextualizá-los e procurar fazer do noticiário um elemento educativo,
socialmente útil no sentido da
prevenção contra esse tipo de ato
-tratando esse conjunto com
transparência.
Eis um princípio elementar e
teoricamente sempre repisado
-a transparência- que deveria se estender para todo o jornal. Este teria de deixar bem claro tudo aquilo que apurou, mostrar, sempre que possível, como
foi que soube disso ou daquilo
(por exemplo, de fontes cujos interesses foram contrariados por
determinados fatos) e, igualmente, admitir o que ainda não
sabe, mas procurará saber para
informar o leitor.
Basta uma olhadela na imprensa, inclusive na Folha, para
constatar que, infelizmente, as
coisas nem sempre acontecem
assim.
Reproduzo a seguir uma bem-humorada lista de dez motivos
pelos quais os jornais costumam
cometer erros, publicada por Mike Clark, ombudsman do "Florida Times-Union".
Ela tem um ar de típica piada
norte-americana, mas bem pode
ser entendida aqui. Por ordem
crescente de importância:
1) porque adoramos receber
aqueles telefonemas de professores de inglês (português!) aposentados;
2) porque um novo editor, vice-presidente encarregado de
aborrecimentos para o leitor, é
incrivelmente eficiente;
3) porque estamos muito ocupados com a preparação da
quermesse anual de arrecadação
de fundos para o comitê local
"pró-conspiração da mídia democrata";
4) porque, se nos tornássemos
de repente perfeitos, o dono do
jornal iria achar que nossa equipe está com gente demais;
5) porque o editor-chefe está
sempre sonhando acordado com
a substituição de alguma tirinha;
6) porque um consultor descobriu que a seção de correções é a
mais lida do jornal;
7) porque a equipe chegou à
conclusão de que, se os programas de transmissão de rádio ao
vivo não são obrigados a checar
os fatos, nós também não precisaríamos fazê-lo;
8) porque adoramos deixar os
fanáticos por palavras cruzadas
enlouquecidos;
9) porque, se não formos procurados pelos leitores, como iremos saber se eles de fato lêem o
jornal?
10) para manter os ombudsmans empregados, até que alguém um dia descubra o que esse cargo realmente quer dizer.
"O Estado de S.Paulo" publicou
na quinta-feira que o ministro
da Justiça, Miguel Reale Júnior,
defende a criação do cargo de
ombudsman para as emissoras
de TV aberta.
A proposta pode parecer distante da realidade, pode ser apenas da boca para fora -mero
balão de ensaio-, e não sei até
que ponto as redes de TV se disporiam a acatá-la na prática.
Mas pelo menos discutir o tema
faz todo sentido num país em
que a televisão tem tanto peso.
Para que uma eventual adoção da sugestão ministerial não
seja "de fachada", vai desde já
uma sugestão: que haja um programa do eventual ombudsman,
nos moldes daquele que existe,
por exemplo, no canal de TV
"France2", cujo "mediador" (como dizem os franceses), Jean-Claude Allanic -também presente ao encontro de Salt Lake
City-, leva ao ar todo sábado
um debate sobre a programação
e a cobertura jornalística realizada pela emissora na semana.
Será pedir demais?
Índice
Bernardo Ajzenberg é o ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato
de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade
por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor
-recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário
dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Bernardo Ajzenberg/ombudsman,
ou pelo fax (011) 224-3895.
Endereço eletrônico: ombudsman@uol.com.br. |
Contatos telefônicos:
ligue (0800) 15-9000; se deixar recado na secretária eletrônica, informe telefone de contato no horário de atendimento, entre 14h e 18h, de segunda a sexta-feira. |
|