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OMBUDSMAN
Cem dias
BERNARDO AJZENBERG
A ocupação do Iraque jogou
para segundo plano, na mídia, inúmeros assuntos, dentre
eles o balanço dos primeiros cem
dias da "era Lula".
O tema, apesar disso, não passou em branco, e o tom praticamente unânime, nas reportagens
e editoriais, foi de que a nova administração federal surpreendeu
na condução da política econômica, superando positivamente
expectativas do "mercado" (dentro e fora do país), reduzindo
com habilidade a desconfiança
de setores empresariais, gerando,
ao mesmo tempo, desconforto
entre sindicatos, políticos aliados
e até mesmo alas do próprio PT.
Outra avaliação comum na
mídia: o governo foi regular na
articulação política, bem nas relações exteriores (diplomacia) e
bastante inoperante no social.
Mas, se houve consenso nas
suas primeiras avaliações genéricas, o mesmo não se pode dizer
do comportamento da imprensa
em relação ao Planalto desde a
posse de Luiz Inácio Lula da Silva, em 1º de janeiro.
Aliança tácita
Em meio à ansiedade generalizada para captar quais seriam o
novo estilo do Planalto, a nova
rotina na Esplanada dos Ministérios e em especial a "agenda
petista" -o que levou os jornais
a divulgarem inúmeros "balões
de ensaio" de possíveis medidas
governamentais, numa disputa
para ver qual conseguiria antecipá-las com mais acerto-, a Folha se diferenciou com nitidez ao
adotar, já nas primeiras semanas, um viés aberta e constantemente crítico.
Algo positivo, coerente com seu
posicionamento editorial adotado logo após a vitória do PT ano
passado -e facilitado pelos desencontros e desarmonias iniciais do próprio governo.
Essa postura, cabe registrar, teve um componente curioso. No
embalo das medidas econômicas
ortodoxas e dos discursos oficiais
voltados para acalmar inquietações do "mercado", o jornal acabou compondo uma espécie de
aliança tácita com os chamados
"radicais" do PT.
Sua cobertura, ao destacar as
contradições entre a pregação
eleitoral, a história petista e as
primeiras medidas do partido no
comando do país, ganhou cores
de "esquerda".
Essa aliança pontual explica,
por exemplo, a desproporcional
exposição dada pelo jornal a deputados "radicais" e às cobranças feitas por sindicalistas e sem-terras às novas autoridades.
Somem-se a isso os (necessários) questionamentos ao prioritário programa Fome Zero, suas
incongruências e oscilações.
Muitos leitores, até alguns que
não votaram em Lula, chegaram
a questionar ao ombudsman, às
vezes com razão, se a Folha não
estava "apressada" demais.
No conjunto, penso que, apesar
de alguns excessos e cutucões
gratuitos, o jornal acertou bem
mais do que errou ao não adotar
o roteiro da "lua-de-mel".
Fim da exclusividade
Essa diferenciação, no entanto,
diminuiu bastante a partir de
março -quando cresceram casos como o Bahiagate, os deslocamentos de Fernandinho Beira-Mar, a atuação do crime organizado (assassinatos de juízes), além da guerra no Iraque.
A crítica ao passo lento do Fome Zero, por exemplo, tornou-se
generalizada (a exceção reside
na TV, em especial na Globo),
com outros jornais inclusive tomando da Folha, em alguns momentos, a dianteira nesse ponto.
Para mencionar outros episódios, nada cruciais mas muito
simbólicos, não foi ela o primeiro
veículo a revelar o fato de o ministro-chefe da Casa Civil, José
Dirceu, ter ganho de presente de
um parlamentar um relógio Rolex nem, em outra ocasião, a iniciativa do mesmo ministro de
acelerar seu pedido de aposentadoria antes da provável reforma
da Previdência.
A Folha igualmente titubeou e
deu com menos ênfase do que os
concorrentes o questionável uso
de um veículo oficial para conduzir a cadela Michele, de Lula,
do Alvorada à Granja do Torto,
em 19 de março.
Também foi com timidez que o
jornal noticiou, no início daquele mês, as desconcertantes declarações dos ministros Antônio Palocci (Fazenda) e Guido Mantega (Planejamento) no Senado
admitindo de uma penada, ao
lado do senador Aloizio Mercadante (PT-SP), ter o PT se equivocado no passado ao não
apoiar no Congresso as reformas
propostas por FHC.
Em que pesem as nuanças de
contundência, parece claro que a
Folha já não detém a exclusividade na cobertura crítica regular do governo -o que é, diga-se, bom sinal para o jornalismo.
Dificuldades
Hoje, os principais desafios da
mídia em relação ao novo governo estão em outro patamar, e é
aqui, creio, que a diferenciação
pode e deve se manifestar:
1) captar as eventuais divergências, as disputas, o nível real
de homogeneidade dentro do governo quanto às questões em
pauta (autonomia do Banco
Central, política de alianças partidárias, aplicação dos programas sociais, por exemplo), de
modo a propiciar o debate sobre
a sua real viabilidade. Não me
refiro às divergências entre ministros e os "radicais" do PT ou a
oposição -isso é fácil fazer e já
virou folclore-, mas no interior
do próprio núcleo do Executivo;
2) esmiuçar com clareza, didatismo, profundidade e pluralismo o conteúdo das complexas
reformas tidas até aqui como
prioritárias (a tributária e a previdenciária) e as suas prováveis
consequências concretas. O que
implica o próprio jornal aprofundar seu conhecimento a respeito dos temas sobre os quais
elas se estruturam.
Ante um governo que não tem
primado pela facilitação de acesso a informações, essas tarefas se
complicam para a imprensa.
Um exemplo das dificuldades
apareceu sexta-feira, quando alguns jornais divulgaram o conteúdo de um documento de quase cem páginas do Ministério da
Fazenda contendo balanço e diretrizes para a economia neste e
nos próximos anos.
Na edição nacional, a reportagem da Folha era aberta com a
afirmação de que esse material
representava "a primeira versão
do programa de governo do PT
depois da campanha eleitoral".
Não é pouco, ainda mais considerando que as premissas do estudo, segundo o noticiário, são
as mesmas da polêmica ortodoxia em vigor, sem, aparentemente, nenhuma sinalização de reais
mudanças no futuro.
Tal avaliação implicava uma
edição à altura da relevância do
texto, que traduzisse em detalhes
os seus pontos principais, consequências, contradições etc.
Foi o que fizeram, por exemplo, embora de modos diferentes,
o "Estado de S.Paulo" e o "Valor" -mas a Folha não fez.
Pior: na edição mais tardia,
voltada para SP e DF, aquela
afirmação foi deslocada quase
para o final do texto da reportagem e atenuada ("podendo ser
considerada uma primeira versão..."), evidenciando-se ainda
mais a subestimação, por parte
do jornal, do impacto político e
econômico desse documento
-dentro e fora do governo, dentro e fora do país e, especialmente, em sua base de apoio.
Pode haver mudanças entre
uma edição e a outra -não seria a primeira vez. Mas, nesse caso, a Folha falhou em ambas.
Reflexão
Talvez o "Estado" e o "Valor"
tenham obtido o documento antes, dispondo, com isso, de mais
tempo para refletir e editá-lo.
Ou a falha pode ter sido apenas sintoma da dimensão dos
obstáculos que a Folha por vezes
encontra, em situações concretas
imprevistas, no dia-a-dia, para
dirimir internamente dúvidas e
discordâncias de avaliação sobre
a situação atual e os possíveis rumos do governo.
Nas duas hipóteses, o fato positivo de ter retomado o assunto
com mais profundidade na edição de ontem revela atenção do
jornal para com o leitor, mas
não anula a necessidade de reflexão sobre os motivos do desarranjo do dia anterior.
Pois não foi esse, seguramente,
o evento mais feliz dentre os que
a Folha deve guardar na memória sobre os primeiros momentos
da cobertura da "era Lula".
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Bernardo Ajzenberg é o ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato
de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade
por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor
-recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário
dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Bernardo Ajzenberg/ombudsman,
ou pelo fax (011) 224-3895.
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