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OMBUDSMAN
O dilema
BERNARDO AJZENBERG
Sabia-se desde os atentados
terroristas do dia 11 de setembro nos EUA que uma "guerra"
se abriria em relação a questões
como propaganda, liberdade de
imprensa, direito à informação,
segurança nacional.
O debate pegou fogo, porém,
na semana passada, com o início, domingo, dos bombardeios
ao Afeganistão e, em especial,
após a divulgação, no mesmo
dia, do vídeo com mensagem de
Osama bin Laden.
Na terça de manhã, a assessora de segurança nacional de
George W. Bush, Condoleeza Rice, pediu para os chefes das principais redes de TV dos EUA
"pensarem duas vezes" antes de
colocar no ar declarações do terrorista saudita. O pedido se estendeu na quinta aos jornais,
com ênfase para evitar reproduzir íntegras dos discursos.
O primeiro grupo respondeu
globalmente de modo positivo,
aceitando não veicular Bin Laden ao vivo e restringindo as
imagens em movimento. Os jornais, menos receptivos, decidirão
caso a caso.
Maniqueísmo
A imediata reação de quem
preza os direitos civis é condenar
qualquer ingerência nos veículos
de comunicação, mesmo sendo
compreensível, no caso presente,
que o governo faça a solicitação
que achar necessária em nome
do que avalia ser a segurança
nacional.
A liberdade de imprensa é inegociável. Cabe aos meios de comunicação decidir, sem censura,
o que consideram ou não adequado disponibilizar a seus consumidores. A partir daqui, sim,
começam o dilema e a polêmica.
É relativamente fácil criticar
aqueles que se propõem a ponderar o pedido oficial e a editar o
material coletado levando em
conta questões de segurança. Seria capitulação, aplicação passiva de autocensura.
Ao reportar a decisão das TVs
norte-americanas em sua edição
de quinta-feira, a Folha, a meu
ver, incorreu nessa precipitação.
A discussão, porém, é bem
mais complexa. E todo maniqueísmo deve ser banido numa
situação tão extraordinária como a atual.
A imprensa sempre editou e selecionou. Se os leitores a consomem, não é por ingenuidade,
mas sim porque confiam em sua
capacidade de fazê-lo bem.
Ainda mais numa sociedade
como a americana -na qual a
liberdade de imprensa, apesar
dos conflitos, é real-, acatar
com autonomia e responsabilidade, em nome da segurança
nacional, um pedido de restrição
não significa automaticamente
abdicar dessa liberdade. Tanto
mais se há transparência, informando-se ao público da decisão.
É preferível uma pressão de governo aberta, como essa, à cotidiana pressão oculta, feita por
meio de telefonemas secretos aos
donos da mídia, como ocorre nos
países de tradição democrática
inconsistente, a começar por este
aqui (Brasil), ou onde, em regra,
a "segurança nacional" não costuma coincidir com o real interesse nacional.
O julgamento de uma decisão
como essa, portanto, só pode se
dar a médio e longo prazo, à luz
do próprio noticiário que esses
veículos produzirem e de seu
confronto com os fatos que se forem confirmando.
Hipocrisia
Há muita hipocrisia nesse debate. O "Washington Post" revelou, semana passada, que 17 grupos de imprensa, inclusive aquele ao qual o próprio jornal pertence, sabiam desde a sexta (dia
5) da iminência do ataque ao
Afeganistão. Mas nenhuma informação "vazou".
O editor-executivo do jornal
admitiu, em reportagem do
"New York Times", que, no último mês, bem antes dos pedidos
de Rice, foram omitidas dos leitores informações de conhecimento do jornal cuja divulgação
poderia atentar contra a segurança nacional.
Alguém imagina que a Folha,
ou qualquer outro jornal brasileiro, mandaria diretamente para as rotativas uma declaração
de Bin Laden ou da Al Qaeda,
sem lê-la antes? Duvido. Ora, por
que o mesmo raciocínio não valeria para as suas eventuais entradas ao vivo na televisão?
Registre-se, a propósito, que a
Rede Cultura, por exemplo, fez
um acordo formal com a TV Al-Jazeera, anunciado na quinta.
Em conversa com o ombudsman, seu diretor de jornalismo,
Marco Antônio Coelho Filho,
afirmou na sexta que a intenção,
no que diz respeito a declarações
de Bin Laden, é analisá-las antes, não transmiti-las ao vivo.
"Estamos no fio da navalha",
diz Coelho Filho. "Queremos dar
o outro lado, mas não se deve
desconsiderar o interesse público, marca do nosso jornalismo."
Informação curiosa: segundo o
jornalista, ao contrário do que se
propagou, não há contrato de
exclusividade entre a norte-americana CNN e a rede de TV
do Qatar, sensação do momento.
No caso do Brasil, acrescente-se, o complicador é ainda maior.
As informações, na sua quase totalidade, provêm de agências internacionais, americanas ou européias. Poucos são, infelizmente, os correspondentes internacionais.
Só isso já implica uma filtragem considerável, um grande
risco de sofrer manipulação e de
se sujeitar, involuntariamente, à
propaganda de guerra.
Um dos contrapesos a esse drama jornalístico está em alimentar ao máximo a polêmica, a reticência, as análises, sem prejulgamento.
Se conseguir fazê-lo, transmitindo ao mesmo tempo as informações de guerra relevantes de
que dispuser, a imprensa fora
dos EUA estará cumprindo seu
papel.
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Bernardo Ajzenberg é o ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato
de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade
por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor
-recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário
dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Bernardo Ajzenberg/ombudsman,
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