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OMBUDSMAN
Testemunha ocular
MARCELO BERABA
O Rio vive um estado de
guerra civil? A violência
que irrompe nas suas favelas pode ser comparada aos conflitos
na Tchetchênia e no Sudão? A cidade está à beira do abismo por
conta do narcotráfico?
A discussão, que me parece
inútil, retornou, mais uma vez,
por conta da publicação, dia 12,
no diário britânico "The Independent", da reportagem "A cidade da cocaína e da carnificina". O texto provocou reações
emocionadas e uma carta de
protesto do governo do Rio endereçada ao governo britânico.
A discussão me parece inútil
porque, independentemente dos
exageros que a reportagem possa
conter, na sua essência ela está
correta: é gravíssimo o problema
da violência em cidades como
Rio, São Paulo e Belo Horizonte,
para ficar nas maiores da região
mais rica do país.
Os fatos narrados diariamente
pelos jornais mostram como estas cidades estão conflagradas,
principalmente em suas regiões
mais pobres dominadas pelos comandos que guerreiam entre si e
enfrentam, de igual para igual,
as forças policiais.
O que me preocupa mais não é
a realidade, de resto já conhecida, descrita na reportagem do
"Independent", mas outra questão: os jornalistas do Rio que estão na linha de frente da cobertura desta "guerra" têm condições de exercer seu ofício com segurança e independência?
Depois do assassinato do repórter Tim Lopes, da TV Globo,
em junho de 2002, ficou muito
difícil entrar nas favelas. Isso significa que estamos deixando de
fornecer aos leitores informações
colhidas in loco, e que temos hoje
praticamente uma única fonte
de notícia, a polícia.
Vivemos um conflito: ou nos
arriscamos para garantir o direito dos leitores de acesso a informações e o direito dos moradores dos bairros ocupados de se
manifestar e contar as suas versões dos fatos, ou os privamos
desses direitos em nome da segurança, o que é legítimo, mas angustiante.
Essa questão, que apenas mencionei na coluna "A nossa guerra na mídia" (18/4), retorna com
força por uma razão: a seqüência de episódios de risco vividos
pelos repórteres do Rio nas últimas semanas, principalmente
por profissionais do jornal "O
Dia".
Foram vários casos. Vou contar dois. No dia 6 de outubro,
uma equipe do jornal foi detida
na sede da associação de moradores da favela do Dique por traficantes armados de fuzis. Os jornalistas tentavam ouvir moradores vítimas da guerra entre
dois comandos que disputam o
controle da favela de Vigário Geral. O motorista da equipe foi
obrigado a levar um traficante
ferido a bala ao hospital, enquanto repórter e fotógrafo foram mantidos presos como reféns. Só foram liberados quando
o carro retornou.
Mas o caso mais revelador das
contradições que vivem hoje, no
Rio, jornalistas e empresas jornalísticas ocorreu na segunda-feira, 27 de setembro. Uma equipe do "Dia", escalada para fazer
uma reportagem sobre a Core
(Coordenadoria de Recursos Especiais), grupo de elite da Polícia
Civil, foi convidada para um
deslocamento de helicóptero.
Quando sobrevoava o morro da
Providência, no centro da cidade, a aeronave foi atacada por
traficantes. Um dos policiais revidou os tiros, e o delegado que
acompanhava a equipe pediu
reforços. Policiais invadiram o
morro, prenderam vários moradores e mataram dois supostos
traficantes.
A equipe do "Dia" que estava
no helicóptero atacado correu,
portanto, um risco sério, e o correto teria sido ser retirada do local. Mas a permanência permitiu ao fotógrafo Carlos Moraes
registrar, sem que imediatamente se desse conta, um flagrante
importante. Na Redação, ao
examinar as fotos que Moraes tirara às cegas, apenas com o braço e a câmara para fora do helicóptero, os jornalistas perceberam que os dois rapazes mortos
eram os mesmos que, momentos
antes, estavam rendidos e deitados no chão. Tinham sido, portanto, mortos pela polícia depois
de dominados.
A reportagem, inicialmente
prevista para mostrar um lado
positivo da polícia, acabou servindo de base para uma acusação formal contra os policiais:
"Agentes acusados de execução"
foi uma das manchetes do dia
seguinte. Por conta disso, seis policiais foram afastados, incluindo o delegado que dirigia a Core
e que estava no helicóptero com
os jornalistas.
Esse caso prova a importância
da presença da imprensa nas
áreas conflagradas. Mas o risco,
como vimos, é imenso. O que fazer?
A situação de perigo para os
jornalistas não é uma exclusividade do Rio nem da cobertura
policial. Em artigo publicado em
outro jornal inglês, o "Financial
Times", no dia 2, o professor Rob
Brown faz um relato das dificuldades que os jornalistas têm para denunciar crimes em países
como a Índia, a Colômbia ("vem
sendo há muito o mais mortífero
dos países para quem deseja trabalhar como jornalista devido
ao flagelo aparentemente insolúvel do narcoterrorismo") e o
Zimbábue. E cita o Brasil de Tim
Lopes.
Para Brown, "jornalistas dos
países em desenvolvimento têm
de ser heróis para reportar sobre
suas sociedades".
Não precisamos de heróis, apenas de repórteres que possam
testemunhar e escrever sobre o
que vêem.
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Marcelo Beraba é o ombudsman da Folha desde 5 de abril de 2004. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Não pode ser demitido durante o exercício da função e tem estabilidade por seis meses após deixá-la. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva dos leitores, recebendo e verificando suas reclamações, e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
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