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OMBUDSMAN
Indigência informativa
RENATA LO PRETE
"Quando você voltar de férias,
encontrará esta humilde mensagem de solidariedade. Pois já
perdi a conta das vezes em que
você criticou reportagens portadoras de uma nova "teoria" sobre aspectos de nossa vida cotidiana, construída sem qualquer
dado concreto ou com dados
muito discutíveis. Seu esforço,
pelo visto, é vão."
"Hoje a Folha repete a fórmula, anunciando em chamada de
capa que a "mendicância vira
profissão em São Paulo", porque
os pedintes têm pontos fixos,
usam ajudantes etc. Que coisa
inédita, não?" A mensagem da
leitora foi enviada no domingo
passado, véspera de meu retorno ao trabalho.
Voltar a ler o jornal de maneira sistemática depois de algumas semanas de descanso é
uma experiência interessante.
Nesse momento, ele parece mais
necessário do que em circunstâncias habituais, um instrumento de orientação para reentrar na atmosfera.
Ao mesmo tempo, o olhar fresco e o relativo desconhecimento
dos temas em pauta permitem
perceber com mais clareza que
falta costura na apresentação
das notícias.
Não se pede que o jornal faça
tratados, nem que funcione como revista. Mas é razoável esperar que indique ao leitor a essência e o sentido da discussão
em curso, seja ela sobre o "neonacionalismo" ou sobre a encrenca com os perueiros em São
Paulo. Não é regra encontrar essa orientação nas páginas.
O distanciamento temporário
também reforça a percepção de
que sobram histórias como a
apontada pela leitora.
"A velha imagem do pedinte
errante que peregrinava pela cidade em busca de trocados ou
de um prato de comida na porta
das casas acabou", dizia a reportagem. "A disputa pela esmola levou os mendigos à "profissionalização'".
"A esmola 24 horas", prosseguia o texto, "deu origem à indústria da miséria -um ramo
lucrativo que envolve a exploração de mão-de-obra infantil,
mentiras e até confrontos para
manter o controle dos pontos de
exploração".
Aí vinham os casos. O da secretária que "trocou o emprego
por esmola", porque naquele
ganhava R$ 150 mensais, metade consumida em condução, e
com esta faz até R$ 35 por dia.
O do homem que pede dinheiro no metrô afirmando ser portador do HIV. "Em apenas um
vagão" ele arrecadou "quase R$
30, segundo contagem da reportagem da Folha".
De acordo com o jornal, o remédio que o pedinte alega ser
muito caro e estar sumido das
prateleiras "não está em falta e
é distribuído gratuitamente".
Depois, a opinião de um estudioso. Para o "antropologista"
entrevistado, "a mendicância
virou um cálculo racional, onde
os pedintes estão sempre à procura de novos nichos, seguindo
a lógica dos empresários: buscar
maior rentabilidade".
Para terminar, uma palavra
oficial. O secretário nacional de
Direitos Humanos dizia que o
governo federal "poderá
apoiar" a implantação do toque
de recolher para retirar das ruas
das principais capitais do país
os menores que pedem esmolas
à noite.
Como a leitora, já no domingo
eu havia me impressionado
com a ausência de novidade naquelas três páginas, principal
destaque do caderno Cotidiano/São Paulo.
Quem não sabe que pedintes
têm pontos fixos, que os donos
dos pontos exploram crianças,
que a disputa por território é
das mais ferozes e que é difícil
separar fato de ficção nas histórias contadas por quem pede esmolas? Aparentemente, só alguns jornalistas da Folha.
Tão ruim ou pior do que a ausência de novidade é o desvio de
foco promovido pela reportagem, pontuada por expressões
pseudo-engraçadinhas como
"miséria S.A." e "mendigo 24
horas".
Em três páginas, o máximo
que se fez para situar a mendicância no quadro social brasileiro foi introduzir um parágrafo periférico sobre o índice de
desemprego em São Paulo.
Alguma coisa está errada
quando a Folha concentra esforços em "desmascarar" um
pedinte de metrô e contar seus
trocados. Indigente, no caso, é a
informação.
É possível que seja vão o esforço para combater esse método
de fabricar reportagens, tão disseminado ele está no jornal.
Mas a carta da leitora deveria
servir de alerta à Redação. A
fórmula já não engana ninguém. Insistir nela é condenar-se à irrelevância.
"Na segunda-feira, a Folha
noticiou a morte de Charles
Schulz, criador dos Peanuts,
abaixo da dobra na Primeira
Página", protestou um leitor.
Ele comparou o tratamento
ao do jornal francês "Libération", que nesse dia trouxe a
morte do desenhista norte-americano, vítima de câncer aos 77
anos, como principal destaque.
Mesmo considerando as diferenças entre as duas publicações, e comparando apenas os
principais diários brasileiros, o
registro na capa da Folha foi o
mais apagado.
De volta ao leitor: "Por que a
principal manchete é geralmente relativa ao governo ou, com
maior frequência ainda, uma
questão de economia? A economia passa, o governo passa -e,
por sinal, quase tudo o que vem
de um ou de outro é mentira ou
de má qualidade. A cultura fica.
Snoopy ainda vai enterrar todas essas agências de pseudocontrole dos serviços públicos
privatizados."
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Renata Lo Prete é a ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato
de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade
por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor
-recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário
dos meios de comunicação.
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