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OMBUDSMAN
Você por fora da coisa
BERNARDO AJZENBERG
É preciso ser muito caradura
para isentar o governo federal -em seus diversos escalões- da maior e principal responsabilidade pela tragédia que
levou ao racionamento de energia e seu tarifaço.
Como disse o empresário Antonio Ermírio em entrevista à Folha no último dia 10, "o governo
dormiu no ponto... Teve tempo
de sobra para resolver essa crise,
que se anunciava há tempos,
mas não fez nada".
Não é ainda certo que pagará
um preço arrasa-quarteirão em
termos eleitorais - afinal, com
perdão pelo trocadilho, muitas
águas ainda vão passar debaixo
da ponte até 2002-, mas ninguém duvida que FHC já está golpeado, politicamente, com intensidade.
A verdade, acrescente-se, é que
a imprensa, como um todo, também não desempenhou um papel dos mais dignificantes nessa
história de águas e quilowatts.
No caso específico da Folha, o
desempenho deixou a desejar em
dois níveis, um macro e um micro. Quanto ao primeiro:
É verdade que o jornal publicou em 31 de maio de 2000, com
manchete de capa, que o Operador Nacional do Sistema Elétrico
(ONS) negociava então racionamento de energia com grandes
empresas.
Também é verdade que deu
em agosto outro texto, com o título "Energia vai faltar ou subir,
diz Fiesp", reportando o alerta
feito pelo presidente daquela entidade
a empresários.
A pergunta que se coloca, porém, é a seguinte: por que o jornal não foi atrás do caso? Por que
não deslocou repórteres para
averiguar a situação energética
do país, havia já muito tempo situada próxima de um curto-circuito? Por que não colocou o tema como prioridade em sua
agenda?
"Os jornalistas somos imbatíveis na hora de informar coisas
como "os apagões começaram
ontem", escreveu o colunista
Clóvis Rossi no domingo passado, para concluir: "Mas perdemos o hábito de lidar com tendências, de olhar consumo, demanda e investimento e dizer:
olha, se tudo ficar assim, os apagões serão inevitáveis".
Petrificação
É preciso, no entanto, ir mais
longe. E, aí, duas explicações se
impõem.
Primeiramente, o jornal -e
vale para o conjunto da mídia-
perdeu a iniciativa investigatória
no que se refere aos setores privatizados da economia e sua
atuação. Permaneceu durante bom tempo petrificado, talvez pelo fato de
que em editorial tivesse sido uma
das vozes mais fortes a favor, justamente, da desestatização.
O segundo motivo -mais comezinho- está no descaso com
que o jornalismo costuma encarar assuntos chatos e técnicos como esse da energia, como se eles
fossem menos relevantes para a
vida do país do que qualquer
querela parlamentar.
Com a eclosão da crise, semanas atrás, a Folha tentou recuperar terreno. Na primeira quinzena deste mês, publicou três editoriais sobre o drama. Trouxe,
embora com atraso, a voz de especialistas que demonstraram a
incúria e a falta de planejamento
do governo no trato da questão.
Vários de seus colunistas opinaram ou analizaram o caso.
Nada disso, creio, apaga (para
usar a palavra em voga) a omissão acima mencionada -tem
razão Gilberto Dimenstein
quando escreve (em 13 de maio)
que "sejamos honestos: se os governantes foram incompetentes (e foram), a imprensa estava refém da desinformação, não investigou como deveria e não fez o barulho que poderia"-, mas reflete uma tentativa de firmar algo no terreno.
O outro nível em que se deu o
desempenho negativo do jornal
na cobertura da crise energética
foi o "micro".
Ele também se evidenciou
nas últimas semanas, em meio
ao cipoal de especulações e polêmicas referentes a quais seriam
as medidas do governo e como
elas seriam aplicadas.
Assuntos plebeus
De início falou-se no "racionamento por cotas" -sem explicar
no primeiro momento o que isso
significava. Depois surgiu o fantasma dos "apagões", sucedendo-se uma série de informações e
cálculos desencontrados. Toda a
imprensa participou do jogo, diga-se, dos jornais às revistas, passando pelo rádio e pela TV.
Tudo bem que o governo tampouco sabia ao certo o que fazer.
Só que, em vez de aguardar definições ou de apurá-las, a mídia
passou a constituir uma espécie
de onda perversa, um festival de
chutes, no qual os leitores só poderiam se perder.
Há quem diga que os meios de
comunicação embarcaram no
jogo do Planalto, que teria exagerado na avaliação, pintado o quadro com cores mais carregadas
do que a realidade, numa ação
"terrorista" e diversionista, visando a desviar a atenção da população e da própria mídia da
operação "suja" por ele realizada
no Congresso para impedir a CPI
da corrupção.
Não acredito nisso. Tudo indica que a crise é mesmo de extrema gravidade.
Por trás dessa onda perversa de
desinformação e alarmismo, está, mais, a expressão da concorrência cega e selvagem entre os
órgãos de imprensa, cada qual
tentando trazer na frente dos demais a definição daquilo que, de
fato, ainda não se definira.
Tudo bem, até, se as informações publicadas fossem sempre
corretas. Mas o problema é que
esse frenesi, em especial no caso
da Folha, combinou-se com um
vício antigo do jornal, qual seja:
sair-se bem nas "grandes causas", escorregar nas "pequenas".
Pois a Folha tem ao longo dos
anos se credenciado, e merecidamente angariado prestígio ao
apontar irregularidades nos poderes e corrupção, ao revelar
bastidores de batalhas políticas.
É campeã nas coberturas "nobres".
No entanto, diante de uma
questão menos glamourosa
-um assunto plebeu, digamos,
como a conta de luz da patuléia-, a performance do jornal
murcha.
Quando se trata de "questiúnculas" do dia-a-dia, conquanto
cruciais para o bolso ou o lazer
do leitor -esse ser disperso, que
simplesmente sustenta direta e
indiretamente, com seu dinheiro, a própria independência de
que o jornal desfruta para "estourar" nas "grandes causas"-,
quando se trata do "arroz com
feijão", o ânimo e a precisão refluem nos textos e nas investigações.
O dia D
O auge da desinformação, no
caso aqui em pauta, se verificou
justamente no "dia D": na edição
desta sexta-feira, dia em que o
"ministro do apagão", Pedro Parente, anunciaria as medidas
mais relevantes do plano de racionamento.
De modo taxativo, sem hesitar,
a Folha arriscou forte -e, à luz
(de novo perdão pelo trocadilho)
das decisões anunciadas, errou
feio:
1) Afirmou que a "sobretaxa"
só seria aplicada aos consumidores que não cumprissem as suas
metas (errado: o aumento tarifário independe disso);
2) Não conseguiu adiantar que
haverá suspensão de três dias
(seis em caso de reincidência) no
fornecimento para quem não
cumprir a meta;
3) Falou em "multa" de até
200%, quando claramente se trata de aumento direto e automático da tarifa nos níveis mais elevados de consumo e não de multa;
4) Além disso, uma arte que
trazia "Os exemplos de cálculo",
na capa do caderno Dinheiro,
confundia ainda mais as coisas,
ao propor contas nas quais estava ausente o tal redutor de 20%
que, segundo o texto da reportagem, teria de ser aplicado para a
definição da meta e, por consequência, da "multa" a ser então
aplicada. Uau!
Claro, como sempre, há tempo
para desfazer os erros -e este
fim de semana deve estar servindo para isso- e dar uma chance ao bom
serviço.
Os leitores, mais uma vez, e
apesar de tudo, agradecerão (até
quando?). Afinal, "alguém tem
que ir atrás da coisa", "não pode
deixar a coisa correr solta", "às vezes você pensa que é uma coisa e
é outra".
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Bernardo Ajzenberg é o ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato
de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade
por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor
-recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário
dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Bernardo Ajzenberg/ombudsman,
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