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OMBUDSMAN
Os sem-diferença
RENATA LO PRETE
Não é de hoje que leitores
protestam contra reportagens da Folha sobre o MST, mas
nunca recebi tantas mensagens
como na semana passada.
Foram causadas por três manchetes consecutivas. A primeira,
de sábado dia 13, informou o resultado de pesquisa do Datafolha: "Paulistanos são contra invasões" (de terras, 70%; de prédios públicos, 75%).
No domingo, o principal destaque foi uma reportagem dando
conta de que o movimento recolhe 3% dos créditos oficiais para
assentados ("MST desvia verba
da reforma agrária").
Na segunda, a reação: "Governo suspende verba para reforma
agrária". A decisão foi atribuída, ainda que indiretamente, à
notícia do dia anterior.
"Está parecendo que a Folha
resolveu aderir à política do governo FHC de instaurar no país
um comando de caça ao MST",
escreveu um professor. Ele usou
o slogan famoso para questionar
o jornal: "Tenho a impressão de
que o rabo não está preso com o
leitor, e sim com o poder".
Para outro leitor, a imprensa
"firmou acordo para ministrar
tratamento de choque" aos sem-terra. Um terceiro descreveu a
matéria de domingo como parte
"da escalada organizada pelos
meios de comunicação sob a batuta do Palácio do Planalto".
Outra carta na mesma linha:
"Está em questão a tão cara independência deste diário, que
apresentou a mesma subserviência de "Veja" e outras publicações
aos objetivos do governo".
Presente em várias das manifestações, a teoria da ação coordenada diz respeito ao tom predominante no noticiário sobre a
mais recente ofensiva do MST.
Seu exemplo extremo foi a revista da Abril de duas semanas
atrás ("A tática da baderna"),
cuja medida era dada pela fotomontagem do dirigente João Pedro Stedile vestido de James
Bond, porque os sem-terra, como
o agente 007, "sentem-se autorizados a cometer crimes durante
suas ações".
Embora a pesquisa levada à
manchete tenha entrado no bolo
das críticas, o que de fato incomodou esses leitores foi a edição
de domingo, que trouxe, além da
história dos 3%, longa entrevista
com Stedile.
"Do tipo interrogatório", disse
um dos que me escreveram.
"Não me lembro de ver tanta ênfase de repórteres da Folha
quando entrevistam políticos conhecidos e influentes acusados
de corrupção", reclamou outro.
Autor do pingue-pongue, o secretário de Redação Fernando
Canzian discorda do protesto.
Não considera que sua abordagem tenha sido agressiva. "Foi
assertiva", diz, "e graças ao tom
direto Stedile falou coisas que
não havia dito antes".
O jornalista cita, entre essas
coisas, "o reconhecimento de que
o MST foi ingênuo ao achar que
a reforma agrária resolveria o
problema da pobreza no Brasil,
que se politizou como resposta
ao modelo neoliberal e que os assentados não têm como sobreviver sem os subsídios do governo".
Canzian acrescenta que seu
encontro com o líder dos sem-terra transcorreu "em clima cordial".
Foram quatro as principais
restrições à reportagem sobre o
"pedágio":
a) o assunto não é novo;
b) o destaque foi desproporcional à relevância da notícia;
c) a entrevista com um diretor
de cooperativa no Paraná, parte
desse material, foi ainda mais
dura do que a realizada com Stedile;
d) leitores enxergaram na rapidez com que foram anunciadas providências um sinal de
acerto prévio entre jornal e governo.
"Não desconhecia que aqui e
ali haviam falado sobre os 3%",
responde Josias de Souza, diretor
da Sucursal de Brasília e autor
da reportagem.
"Mas o MST alegava tratar-se
de contribuição voluntária. Pude verificar, em três assentamentos no Paraná, que o pagamento
é exigido, e os que se negam a fazê-lo passam por constrangimento."
Sobre o destaque: "O caso me
parece tão grave quanto o de
prefeituras que deixam de aplicar o devido percentual em educação, por exemplo. É desvio de
dinheiro público da mesma maneira".
O jornalista diz que não houve
acerto. Imagina que o governo
soubesse das investigações da
Folha porque elas incluíram busca de informações no Incra e no
Ministério da Reforma Agrária.
Por fim, defende o tom da entrevista com o diretor da cooperativa. "Tinha de ser incisivo,
porque ele se recusava a explicar
as irregularidades constatadas
pela reportagem."
Simpatizantes não devem esperar que a Folha abrace a causa
do MST, deixe de se interessar
pela contabilidade do movimento e ligue o gravador para que
seus líderes dêem livre curso às
idéias, sem a intromissão de perguntas difíceis.
Mas o leitor, seja qual for sua
inclinação, tem o direito de esperar que o jornal não perca a cabeça quando o assunto é MST,
preocupação que boa parte dos
concorrentes nem mesmo finge
ter.
Sem dúvida existe relevância
jornalística em explicar a origem
dos recursos do movimento. Ainda que tenha resgatado informações conhecidas, a matéria de
domingo acrescentou novidades
a esse respeito.
Mas, como manchete, ela não
resiste a um teste comparativo
com os descalabros ora em pauta, para não falar de casos menos recentes.
De volta à conversa com Stedile, quer tenha sido assertiva ou
agressiva, leitores têm um ponto
ao dizer que costuma ser diferente o tratamento dispensado a
entrevistados mais poderosos e/
ou afinados com posições do jornal.
Quanto ao "reconhecimento
de que o MST se politizou", cabe
perguntar quando esse movimento não foi político, e por que
a imprensa, em coro com o governo, usa o adjetivo como sinônimo de anomalia.
Há algo estranho quando a
manchete da Folha serve de base
para o editorial do "Estado", o
que ocorreu na terça-feira. É
preciso tomar cuidado para que
a cobertura dos sem-terra não
acabe sendo feita pelos sem-diferença.
Último leitor: "Espero que conflitos sociais não sejam tratados
pelo jornal como doença a ser
extirpada, pois são componentes
da democracia".
Não se pode acusar a Folha de
ter subestimado o confronto de
quinta-feira passada na avenida
Paulista. O choque entre policiais e servidores da saúde, educação e estudantes foi manchete
e recebeu cobertura detalhada
na edição do dia seguinte.
Do que se pode acusar a Folha
-e não passou dia, nas últimas
semanas, sem que pelo menos
um leitor o fizesse- é de não ter
dado a devida atenção ao movimento por reajuste salarial que
culminou naquele conflito.
As greves que atingem as universidades públicas de São Paulo
e as redes estaduais de ensino e
saúde, bem como o funcionalismo federal, têm recebido tratamento que varia da superficialidade à omissão pura e simples.
Apenas no caso das universidades houve uma ou outra reportagem de maior fôlego. Ainda assim, nada que chegasse a
refletir a gravidade da situação e
de suas potenciais consequências.
Agora é torcer para que a batalha da Paulista tenha aberto os
olhos do jornal.
A conferência anual da ONO
(Organization of News Ombudsmen) será realizada de hoje a
quarta-feira em Montreal, no
Canadá. Devido à minha participação no encontro, o atendimento ao leitor estará suspenso
esta semana.
Casos urgentes serão encaminhados à direção do jornal por
Rosângela, secretária do Departamento de Ombudsman. Todas
as mensagens serão respondidas
por mim a partir do dia 29.
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Renata Lo Prete é a ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato
de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade
por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor
-recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário
dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Renata Lo Prete/ombudsman,
ou pelo fax (011) 224-3895.
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Contatos telefônicos:
ligue (0800) 15-9000; se deixar recado na secretária eletrônica, informe telefone de contato no horário de atendimento, entre 14h e 18h, de segunda a sexta-feira. |
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