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OMBUDSMAN
Procuram-se bússolas
BERNARDO AJZENBERG
Um desafio à imprensa desde 11 de setembro,
dentre tantos outros, tem sido avaliar o peso a ser reservado para outros assuntos, fora da
guerra.
O "mundo parou" nos dias subsequentes aos atentados. Tudo pareceu se apequenar diante das suas dimensões e das incertezas criadas. Notícias que meses antes seriam manchete de primeira página obtiveram, no máximo, títulos de destaque em páginas internas.
Na
Folha, apenas uma das 38 edições publicadas entre 11 de setembro e 19 de outubro trouxe um outro tema como manchete ("Jader renuncia para evitar
cassação", em 5/10).
Que a "nova guerra"
tenha ocupado o topo das prioridades, é compreensível. E é saudável, até, que tenha feito refletir
sobre eventuais exageros cometidos em coberturas anteriores.
Basta imaginar o quanto se teria gasto a menos de papel com a
crise do painel eletrônico do Senado, por exemplo, caso as torres
gêmeas e o Pentágono tivessem
sido atacados em abril.
Pouco a pouco, porém, alguns
fatos começaram a cobrar mais
espaço, e, no tratamento dessa
demanda, vários deslizes se cometeram.
Em 27 de setembro, um homem invadiu o Parlamento
num cantão suíço, matou catorze pessoas e cometeu suicídio.
No mesmo dia, um C-130 Hércules da FAB se chocou contra
uma serra; morreram todos os
nove tripulantes.
A explosão de um avião russo e
sua queda no mar Negro, na
Ucrânia, causaram a morte de 77
pessoas no dia 4.
No dia 8, o choque entre um
avião da SAS e uma pequena
aeronave matou 118 num aeroporto de Milão (Itália).
Nenhum desses casos recebeu
na Folha mais do que meia página. Algo ridículo em "tempos
normais". Clara subestimação no pós-11 de setembro
-ainda mais se comparado
com as três páginas dedicadas à morte do economista Roberto
Campos, em 10 de outubro.
Além disso, nesse período, a
Folha perdeu a dianteira no caso
Jersey (sobre as supostas contas
do ex-prefeito Paulo
Maluf no exterior) e teve de correr atrás na reativação surgida
em outro caso originalmente por ela levantado: o do
eventual desvio de verbas pelo
deputado Luiz Antônio de Medeiros quando da criação da
Força Sindical.
Greves como as do Judiciário
paulista, das universidades federais e dos funcionários do INSS
receberam cobertura pífia se
comparada à repercussão política e de dia-a-dia desses movimentos.
Até mesmo o ressurgimento
público do músico Herbert Vianna, tocando, em cenas surpreendentes, foi menosprezado.
O confronto Washington-Cabul, com o adendo do bioterrorismo, é sem dúvida o assunto
número um. Mas a guerra, como
tudo indica, será longa, e está
mais do que na hora de o jornal
considerar que o mundo, hoje,
não se resume a ela.
A tabela acima, de pesquisa do
Datafolha com assinantes do
jornal em São Paulo, traz pelo menos dois
dados muito curiosos.
Caem de 91% para 78%
os que dizem
acompanhar a cobertura dos atentados pela Folha. Redução natural, passado mais de um mês dos
eventos, mas que nem por isso
dispensa uma reflexão: não estaria na hora de o
jornal reequilibrar prioridades?
O segundo dado diz respeito à
inclinação política da cobertura. Subiram de 34% para 46% do
total os que consideram que ela está favorável aos
EUA (pergunta 2), embora os
números tenham permanecido
estáveis quando a
pergunta (4) se refere aos países
islâmicos.
A direção do
jornal considera que a Folha tem conseguido, na média, manter o pluralismo, a equidistância.
Discorda, assim, da avaliação de boa parte do leitorado
-e, nesse sentido, não pode ser
acusada, portanto, de ceder à pressão do marketing.
Não se deve subestimar, nessa
discussão, o peso que as manchetes possuem
na apreciação do leitor. É fator consistente.
No período do primeiro levantamento (22 a 25/9), as manchetes foram todas desfavoráveis
aos EUA (com destaque, por
exemplo, para o dia 23: "79%
dos brasileiros rejeitam represália militar americana").
Já no último levantamento (17 a 19/10) se deu o inverso: foi a
semana do bioterrorismo.
De fato, de algumas semanas para
cá, o noticiário do jornal ficou mais equilibrado (esta coluna, em 30 de setembro, alertava: "se a Folha não tomar
cuidado, poderá ser interpretada
como pró-Taleban ou anti-Bush").
Não é de estranhar que, para
muitos leitores, esse reencaixe
possa aparecer como um "desvio"
pró-Washington.
A adoção da palavra antraz no
noticiário gerou reclamações de leitores, em particular após a publicação do artigo de um especialista quinta-feira, no qual se
afirma que o seu uso está equivocado em língua portuguesa.
Em crítica interna, observei que "está mais do
que na hora de o jornal abrir
com transparência a discussão
sobre o nome antraz". Em Nota da Redação no Painel do Leitor ontem, o jornal procura justificar sua opção. A polêmica, no entanto, é grande. E provavelmente vai continuar.
Mas esta não é, claro, a principal
questão gerada pelas reportagens relativas à bactéria.
A Folha, como toda a imprensa, entrou na onda da suposta disseminação de pó branco no Brasil, contribuindo para estimular a sensação de pânico generalizado.
Foi no mínimo duvidosa, a esse respeito, a publicação do quadro
"Como fazer uma arma viva",
na sexta-feira, indicando
como produzir os esporos capazes de atacar o corpo humano.
É preciso rever essa posição urgentemente. Primeiro porque o
carbúnculo (ou será antraz?), dizem estudiosos, não é tudo aquilo que se deu a entender em termos de periculosidade.
Depois porque, ao menos até
quando redijo este texto (madrugada de sábado), o que predominou no Brasil foram trotes e brincadeiras de mau gosto.
Mais complexa e de resolução
a ser cautelosamente depurada,
a segunda questão deriva de
que, até o momento, não houve
comprovação de que os envios de
antraz (carbúnculo?) tenham relação com Bin
Laden e aliados.
Ao inverso, crescia nos últimos
dias -paralelamente ao início
do avanço das tropas terrestres norte-americanas no Afeganistão- a hipótese de que sejam atentados
"domésticos".
Se assim for, como ficará a cobertura da imprensa? Fará sentido mantê-la conectada com a do
confronto diretamente militar? Certamente, não. A não ser que se assuma
de vez a definição criada pelo jornal francês "Le
Monde" para o atual
momento: "nova desordem
mundial".
Aí, caberia misturar tudo: do avião
da SAS a Jader Barbalho, passando pelo mar Negro, Washington e Cabul.
Mais do que George W. Bush, nesse assunto (bioterrorismo) a mídia -Folha inclusive- caminha às cegas,
arriscando-se a misturar alhos
com bugalhos.
O resultado, na hipótese de
bioterrorismo doméstico, será uma amplificação das
incertezas e do risco de estrondosos vexames jornalísticos.
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Bernardo Ajzenberg é o ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato
de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade
por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor
-recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário
dos meios de comunicação.
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