|
Índice
OMBUDSMAN
Gato por lebre
BERNARDO AJZENBERG
Ninguém se surpreende, de
alguns anos para cá, ao encontrar uma mesma peça publicitária, simultaneamente, em diferentes jornais ou revistas.
Para os grandes anunciantes
-instituições financeiras, montadoras, operadoras de cartão de
crédito ou telefonia, redes varejistas, entre outros- trata-se de
uma praxe.
Dessa vez, porém, o governo federal -outro anunciante de peso- resolveu inovar. E, com sua
iniciativa, reacendeu, indiretamente, uma velha questão do jornalismo: a relação entre a área
comercial e a área editorial das
empresas jornalísticas.
O "evento" ocorreu nas edições
de quinta-feira de pelo menos 11
diários de diversos Estados, como
parte de uma ofensiva política de
comunicação do Palácio do Planalto levada a cabo para realçar
os "feitos" de sete anos do real.
Dias antes FHC encabeçara
uma cerimônia de comemoração
com forte apelo midiático. Na última sexta-feira, para mencionar
apenas mais um exemplo, o ministro-chefe da Secretaria de Comunicação de Governo (Secom),
Andrea Matarazzo, publicava na
própria Folha um texto sob o título "Real: sete anos de avanços".
Pois bem, na quinta-feira, então, os principais jornais do país
trouxeram um encarte especial de
quatro páginas, com textos, fotografias e ilustrações, cujo conteúdo era, em síntese, um balanço altamente positivo do governo FHC
e da moeda nascida em 1994.
Semelhanças óbvias
Nada haveria de anormal nisso,
em tese, a não ser por um detalhe:
cada jornal trazia um encarte visualmente diferente, com tipografia, diagramação e textos próprios (veja oito exemplos no quadro à direita).
E não apenas isso: essas diferenças tinham como base a maior
aproximação visual possível (sem
ser uma mera cópia, claro) entre o
encarte e o jornal em que ele se
encaixava.
Na Folha, por exemplo, fazia
lembrar certos "cadernos especiais" que o jornal publica periodicamente. O mesmo para os demais órgãos.
Já no "Diário Popular", para
dar outro exemplo, nem mesmo
uma capa havia: o encarte compunha uma perfeita sequência
com a página anterior.
Com destaque maior ou menor,
diga-se, todos incluíram nessas
páginas os dizeres "informe publicitário" ou "publicidade". Mas
foi indisfarçável, nada capciosa, a
tentativa do governo de ludibriar
os leitores, apresentando um
anúncio oficial como se fosse material noticioso.
Na sexta-feira, a Folha, corretamente, trouxe reportagem revelando como ocorrera a operação.
Mostrava que o governo, por
meio da Secom, gastou R$ 2,5 milhões para os jornais (seus departamentos comerciais, bem-entendido), com apoio num mesmo
material informativo oficial, produzirem, cada qual, o encarte que
publicariam, dentro de padrões
gráficos e editoriais próprios e diferenciados.
Essa reportagem, observe-se de
passagem, incorria em erro ao dizer que o publicitário Alex Periscinoto, secretário de Publicidade
Institucional da Secom e idealizador do projeto, era o "P" da agência DPZ, uma das que estariam
recebendo comissões derivadas
dos tais anúncios, por serem donas das contas do BNDES e do
Banco do Brasil (que bancam a
publicação).
A gravidade do equívoco não
está tanto nela mesma (é de Francesc Petit, um de seus donos, o P
da DPZ), mas no fato de propiciar
uma leitura equivocada de que
Periscinoto teria favorecido sua
própria agência.
Igreja-estado
Deixando isso de lado (o jornal
publicou "Erramos" ontem), o
que se quer discutir, aqui, é até
que ponto essa forma de preparar
anúncios -com visível objetivo
de dificultar a diferenciação entre
eles e as notícias propriamente ditas- não afeta a tradicional e
"sagrada" separação entre a área
editorial e a área comercial dos
jornais, algo que, no jargão da
imprensa, costuma se chamar a
relação "igreja-estado".
A resposta é: direta e formalmente, não; mas, subliminar e indiretamente, sim.
Em seu livro "Sobre Ética e Imprensa" (Companhia das Letras,
2000), o jornalista Eugênio Bucci
escreve o seguinte:
"Um engano bastante comum
entre leitores, telespectadores, ouvintes, e mesmo entre jornalistas e
profissionais de marketing e de
publicidade, é supor que a publicidade garante o sustento dos veículos de imprensa. O engano é comum porque se apóia em números verdadeiros, o que o leva a parecer uma verdade objetiva".
Mas o que sustenta a própria
concepção de "igreja-estado",
acrescenta Bucci, é que "o único
alicerce de uma revista ou qualquer outro veículo jornalístico é a
sua credibilidade".
Esta, sim, conquista o leitor e, a
partir daí, o anunciante, o qual
outra coisa não busca se não o
mesmo leitor.
"Não há uma única publicação
jornalística bem-sucedida, no
longo prazo, que tenha descuidado por muito tempo da confiança
do público e se dedicado a bajular
anunciantes", conclui Bucci.
Embaralhamento
Ouvido pelo ombudsman, o diretor de Redação da Folha, Otavio Frias Filho, disse que, no caso
do encarte, a separação igreja-estado "prevaleceu".
Os jornalistas, diz ele, não tiveram conhecimento prévio do
anúncio. Além disso, "a linguagem tipográfica e iconográfica
não é a mesma do jornal".
Por fim, destaca o diretor, estavam presentes nas quatro páginas
os dizeres "informe publicitário".
Frias Filho admite, no entanto,
que esses dizeres deveriam ter sido introduzidos com mais visibilidade, em tamanho maior, para
deixar ainda mais evidente, ao
leitor, que não se tratava de material noticioso.
"Estão sendo tomadas providências, a partir de agora, no sentido de definir padrões mais rígidos quanto às dimensões desses
dizeres em relação ao tamanho
dos anúncios", informa o diretor
de Redação.
De fato, não chego ao ponto de
afirmar que foi rompido o limite
entre as áreas comercial e redacional. Seria um exagero.
Mas o tratamento visual e editorial específico dado ao encarte
só não induz a engano (ao menos
numa primeira leitura) aos leitores mais tarimbados.
A primeira impressão que eu
próprio tive ao manusear a Folha
na quinta-feira (e permita-me,
leitor, considerar-me experiente
no ramo) foi de que se tratava de
um caderno especial do jornal sobre os sete anos do real, não de
um anúncio.
Constituiu-se, neste caso, com
clareza, um perigoso precedente
de similaridade.
Não se trata de purismo. O que
está por trás dessa preocupação é
a necessidade de enfatizar, justamente, mais uma vez, a questão
primordial da credibilidade.
Qualquer esforço nesse sentido,
mesmo que a ameaça a ela não
pareça a muitos tão evidente, será
positivo num ambiente de mídia
como o atual, cuja tendência é, ao
contrário, o embaralhamento de
cartas, a unificação embaraçosa
entre notícia e propaganda.
Abalada a credibilidade, é todo
o jornal, com ou sem anúncio,
que se esvai -a curto, médio ou
longo prazo.
Índice
Bernardo Ajzenberg é o ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato
de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade
por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor
-recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário
dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Bernardo Ajzenberg/ombudsman,
ou pelo fax (011) 224-3895.
Endereço eletrônico: ombudsman@uol.com.br. |
Contatos telefônicos:
ligue (0800) 15-9000; se deixar recado na secretária eletrônica, informe telefone de contato no horário de atendimento, entre 14h e 18h, de segunda a sexta-feira. |
|