São Paulo, domingo, 24 de dezembro de 2000

Índice

OMBUDSMAN

O especialista

RENATA LO PRETE

Em edição recente, ao relatar os estragos do mau tempo na cidade de São Paulo, a Folha informou que "chuvas com essa intensidade são bem comuns nesta época do ano". Não foi simples constatação do repórter, mas sim explicação atribuída a uma "física e meteorologista".
Em teoria, o jornalista ouve o especialista para esclarecer dúvidas e aprofundar o assunto. Na prática, essas consultas costumam resultar em:
a) algo que o leitor está cansado de saber;
b) algo que ele poderia muito bem concluir sozinho;
c) explicações que nada explicam;
d) frases que servem para tapar buraco em uma ampla gama de situações.
O caso da chuva não foi dos piores. Apesar de abrir as considerações da meteorologista com uma obviedade fixada na experiência de todo paulistano, o jornal pelo menos deixou a entrevistada acrescentar que uma nuvem tropical havia se deslocado do Centro para o Sudeste do país, daí o aguaceiro.
Há exemplos, no entanto, em que não se encontra uma só informação aproveitável no trecho dedicado às palavras do especialista. Foi assim com uma reportagem de julho sobre o vazamento de óleo na refinaria da Petrobras em Araucária (PR).
Uma ambientalista foi convocada para esclarecer que "o atraso na descoberta do vazamento e da colocação da primeira barreira no rio Iguaçu aumentou a extensão dos danos do acidente". Como se fosse concebível o contrário: mais demora; menos prejuízo.
Ela dizia também que "muita coisa não funcionou" na ação da empresa para conter o óleo, conclusão a que qualquer um podia chegar sem leitura. Bastava ver as imagens dos animais tingidos de preto.
Já registrei aqui uma vez o caso dos advogados chamados a explicar o aspecto jurídico da pendência entre o governador do Amapá e a Assembléia Legislativa do Estado, que tentava afastá-lo do cargo.
A matéria, de outubro, começava por informar que "aberração foi a palavra utilizada" pelos entrevistados para definir o processo de afastamento. Entra o advogado 1: Foi "uma aberração do começo ao fim", sinal de "falta de espírito democrático da Assembléia". Em seguida, o advogado 2: Foi "uma verdadeira aberração", com "sucessivas ilegalidades e absurdos jurídicos". Conversa encerrada.
O leitor conclui que aberração é o texto do jornal, supostamente de cunho didático.
Histórias causadoras de grande comoção são as hospedeiras mais frequentes de frases aplicáveis a quase tudo, e por isso mesmo vazias de informação.
"É difícil saber a situação dentro do submarino, mas tecnicamente existe a possibilidade de que parte da tripulação esteja (...) à espera de resgate", declarou à Folha em agosto, a propósito do desastre do Kursk, o colaborador de uma conceituada publicação dedicada a assuntos militares. "Enquanto houver esperança de retirar um sobrevivente, a equipe de salvamento deve tentar o resgate."
À mesma linhagem pertence a declaração do psiquiatra encarregado de comentar, em edição de junho da Revista da Folha, a elevada audiência da exibição, pela TV, do sequestro do ônibus no Leblon: "Esse tipo de transmissão atrai porque todos nós temos um componente destrutivo e agressivo".
Há casos em que a obviedade vem do entrevistado. Às vezes, no entanto, resulta da falta de disposição para ouvi-lo. O jornalista arranca uma frase que enfeite o texto e vai embora, perdendo -e tirando do leitor- a chance de aprender.


Feitiço do tempo

Na quarta-feira, diante de uma página da Folha, lembrei do filme "Feitiço do Tempo", em que o protagonista vive o mesmo dia repetidamente.
No meio da página havia um quadro intitulado "Entenda o caso da feira de Hannover". Acompanhava reportagem sobre conclusões do Tribunal de Contas da União a respeito dos gastos feitos na montagem do estande brasileiro, alvo de investigação do Ministério Público.
Reconheci não apenas o quadro como, especificamente, a informação destacada no alto de uma de suas colunas: "o projeto foi de Bia Lessa, que fez a campanha eleitoral de FHC".
Desse item recuei para o seguinte "erramos", publicado na edição de 3 de outubro: "Diferentemente do que informou o quadro "Entenda o caso da feira de Hannover", Bia Lessa não fez a campanha eleitoral de Fernando Henrique Cardoso".
Lembrei ainda de ter observado, na crítica interna desse dia, que o erro poderia ter sido evitado com a leitura de uma entrevista publicada pouco antes na Ilustrada, na qual a produtora enfatizava não ter participado de nenhuma das duas campanhas presidenciais.
Apesar da entrevista, do "erramos" e de meu comentário, lá estava a informação de novo na página.
O erro em si é o de menos neste caso. Com ou sem Bia Lessa na campanha, permanece mal contada a história do dinheiro consumido na feira. Interessante é o que o incidente revela sobre o caminho da informação. Quem faz o jornal muitas vezes não o lê, daí a repetição de tantas falhas.


Acerto de contas

Em outubro, depois do primeiro turno da eleição, a Folha afirmou que Marta Suplicy teria, caso vencesse, equipe semelhante à que havia trabalhado com Luiza Erundina na prefeitura.
Leitores enxergaram precipitação na reportagem, intitulada "PT deve repetir secretários da primeira gestão". Também pessoas de algum modo ligadas à campanha e a personagens citados me procuraram para dizer que o texto, sob a aparência de notícia apurada em "off", era puro chute.
No domingo em que ocorreu o segundo turno, ao fazer um balanço das críticas à cobertura eleitoral da Folha, observei que o caso da matéria sobre o secretariado ficaria pendente.
É tarefa do jornal investigar a formação do (então provável) governo. O ponto, escrevi, era saber se a apuração tinha consistência, o que só o tempo poderia responder em definitivo.
O tempo deu razão aos leitores. A uma semana da posse, com o primeiro escalão definido, não resta dúvida de que a reportagem estava furada no atacado e no varejo.
No atacado porque, apesar de coincidências pontuais, qualquer um pode ver que são bastante diferentes os perfis do futuro secretariado e do que foi escolhido por Erundina.
No varejo, a comparação entre os nomes do texto e os escolhidos mostra que o jornal errou muito mais do que acertou em seus palpites.
Não que seja possível acertar sempre. Nem que a Folha só tenha se dado mal nesse assunto. Basta lembrar que foi a colunista Mônica Bergamo quem revelou a escolha de João Sayad para a Secretaria das Finanças.
Mas, na reportagem em questão, ficou provado que o jornal vendeu como probabilidade o que não passava de conjectura.


Índice
Renata Lo Prete é a ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor -recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Renata Lo Prete/ombudsman, ou pelo fax (011) 224-3895.
Endereço eletrônico: ombudsman@uol.com.br.
Contatos telefônicos: ligue (0800) 15-9000; se deixar recado na secretária eletrônica, informe telefone de contato no horário de atendimento, entre 14h e 18h, de segunda a sexta-feira.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.