São Paulo, domingo, 26 de março de 2000


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OMBUDSMAN
De costas para a notícia

RENATA LO PRETE


No futuro próximo ou distante, alguém vai procurar, nos arquivos da Folha, o noticiário sobre a queda do prefeito de São Paulo. Descobrirá que, no dia em que a Justiça decidiu afastar Celso Pitta do cargo, o jornal amanheceu com o novo salário mínimo na manchete.
Salário mínimo que todo ano gera a mesma discussão, com os mesmos personagens e desfecho idêntico: o menor reajuste que o governo tiver condições políticas de conceder. Assunto importante, mas sem surpresa. Havia dias era conhecido, se não o valor exato, algo muito próximo do que foi anunciado.
Dos jornais de São Paulo, a Folha foi praticamente o único a não abrir sua edição de sexta-feira passada com a perspectiva de decisão sobre o futuro de Pitta. Fez isso embora na noite anterior quase tudo levasse a crer que o juiz havia considerado consistente a argumentação dos promotores.
Um dado torna o pouco caso mais surpreendente. Sem subestimar o efeito da entrevista de Nicéa Pitta à Globo, nem o do depoimento de seu filho ao Ministério Público, o fato é que o afastamento resultou de ação baseada em duas revelações da Folha e em outras duas, anteriores, do "Agora", diário do mesmo grupo (uma delas saiu na "Folha da Tarde", antecessora do "Agora").
As quatro histórias:
a) o superempréstimo do empresário Jorge Yunes ao prefeito, cerne da ação por improbidade administrativa, descoberto por Roberto Cosso em agosto de 1998;
b) mudança aprovada pela prefeitura valorizando imóvel de Yunes, revelada pelo mesmo repórter em abril de 1999;
c) existência de quatro parentes do empresário entre os funcionários "fantasmas" da Anhembi Turismo, levantada por Lilian Christofoletti na mesma época;
d) projeto de Pitta para alterar o zoneamento da cidade beneficiaria, caso implementado, imóvel de Yunes (mesma repórter, mesma época).
É curiosa a dinâmica do caso Pitta. O clima criado pelas acusações de Nicéa, ampliadas no relato de Victor aos promotores, acabou por jogar nova luz sobre histórias que já haviam frequentado o noticiário.
A Folha, que tantas vezes faz alarde sobre méritos discutíveis, desta vez parece que não percebeu o quanto seu trabalho havia contribuído para o desenrolar do escândalo municipal.
Ontem, é lógico, o pacote veio completo: capa de impacto, páginas e mais páginas, cronologias e explicações. Com o prefeito afastado do cargo e desaparecido, era impossível fazer menos.
Vingando ou não um eventual recurso de Pitta para permanecer no Palácio das Indústrias, o certo é que faltou ao jornal sensibilidade para perceber a temperatura dos acontecimentos na semana que passou.
A sexta-feira foi o sinal mais evidente do problema, mas não o único. No dia anterior a Folha havia subestimado totalmente o impacto do depoimento de Victor. Carente de informações, a reportagem ficou perdida em uma edição que privilegiou histórias exclusivas, mas de menor importância.
Uma coisa é manter a cobertura equilibrada, livre de torcidas. Outra, muito diferente, é voltar as costas para a notícia.
Se o jornalismo é um registro taquigráfico da História, como define o projeto editorial, então as anotações recentes da Folha vão precisar de revisão.
Remédio contra superinteresses

No sábado, 18 de março, uma reportagem em Ciência apresentou números relativos a infecções hospitalares, destacando que elas causam 300 mil mortes por ano no mundo.
O jornal relacionou causas do problema e explicou que os médicos lutam contra a resistência das bactérias aos medicamentos. Um texto à parte anunciou o surgimento de uma nova classe de antibióticos, que "se mostrou eficaz contra as superbactérias".
Protesto de uma leitora: "A matéria não passa de um chamado para a propaganda do antimicrobiano. Compreende-se o motivo quando se lê, mais abaixo, que quem patrocinou a viagem da repórter a Cancún foi a empresa fabricante do medicamento".
A leitora, que é médica, refere-se ao esclarecimento publicado no pé da reportagem, praxe na Folha quando seus profissionais têm despesas custeadas por fonte que não o jornal.
"Sejamos coerentes", escreveu ela. "A matéria deveria ter o aviso "informe publicitário", já que foi paga por um laboratório para "informar" o leitor sobre sua mais nova descoberta."
O editor de Ciência, Marcelo Leite, reconhece que "há, em princípio e em geral, conflito de interesses nas viagens de jornalistas a convite de empresas".
Mas defende a reportagem sobre infecção hospitalar pela relevância do tema e dos dados publicados e pela transparência com que foi tratada a questão do patrocínio.
"A empresa está lançando uma classe de antibióticos que pode ajudar a resolver o problema", argumenta o editor. "A reportagem tem interesse público e jornalístico. Não poderia deixar de sair porque a autora viajou a convite."
O questionamento da leitora sobrevive à resposta da Redação. Infecção hospitalar é tema importante, sem dúvida, mas as informações oferecidas foram poucas e ficaram soltas no espaço ("A incidência no Estado de São Paulo varia de 1,6% a 34% das internações." Isso é muito? Existe padrão internacional? O jornal não explicou).
Para recolher os números fornecidos pelas duas outras fontes que alimentam a reportagem (Sociedade Internacional de Doenças Infecciosas e Centro de Vigilância Epidemiológica do Estado) não era preciso ir ao balneário mexicano.
Embora tenha sido apresentado como atração principal, o texto parece "escada" para chegar ao verdadeiro assunto, que está ao lado: a nova droga e suas anunciadas qualidades.
A Folha faz mais do que outros veículos ao exigir que o leitor tome conhecimento das condições em que foi realizada a pauta, mas isso não basta.
Para superar o conflito de interesses, e não apenas explicitá-lo, o jornal tem de caminhar para assumir total responsabilidade pelas viagens necessárias à produção de seu noticiário. Supostas cortesias podem e devem ser dispensadas.


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Renata Lo Prete é a ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor -recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Renata Lo Prete/ombudsman, ou pelo fax (011) 224-3895.
Endereço eletrônico: ombudsman@uol.com.br.
Contatos telefônicos: ligue (0800) 15-9000; se deixar recado na secretária eletrônica, informe telefone de contato no horário de atendimento, entre 14h e 18h, de segunda a sexta-feira.

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