|
Próximo Texto | Índice
OMBUDSMAN
Os invisíveis
BERNARDO AJZENBERG
Seis anos atrás, quando da
comemoração dos 300 anos
da morte de Zumbi, a Folha publicou um caderno intitulado
"Racismo Cordial".
Baseado em ampla pesquisa
feita pelo Datafolha, artigos e
entrevistas, o trabalho demonstrava, de modo estatístico e
transparente, a forma particular
de que se reveste a discriminação
racial no país.
Algo que estudiosos já haviam
apontado ganhava, ali, reafirmação científica, atualização e
extraordinária divulgação.
Houve polêmica, ampla repercussão.
Outras publicações também
trouxeram reportagens sobre o
assunto, conferindo à efeméride
um destaque inédito.
Aquilo que poderia ter significado a inauguração de uma modificação estrutural no tratamento dedicado pela imprensa
como um todo à questão do racismo acabou, no entanto, por
engavetar-se.
A verdade é que, de lá para cá,
refletindo a indiferença velada
para com o tema que perpassa a
sociedade brasileira (em que pese o fato de ao menos 44% dos
habitantes do país serem oficialmente negros), a imprensa pouco alterou o seu comportamento
na cobertura de formas específicas, mais ou menos subliminares, de expressão do racismo.
Este continua como tema tabu,
sob o disfarce, de há muito desmascarado, da suposta democracia racial brasileira. E não
configuraria exagero afirmar
que o seja justamente pelo grau
de explosividade que carrega.
Com raríssimas exceções, o racismo e suas mazelas não frequentam as pautas diárias, estão alijados de qualquer iniciativa regular e permanente.
Deslizes
Permanece atual um célebre
trecho do livro "O Homem Invisível" (1952), do americano
Ralph Ellison (1914-1994), cujo
protagonista, negro, lamenta:
"Eu sou invisível, entenda,
simplesmente porque as pessoas
recusam-se a me ver. Como as
cabeças sem corpos que às vezes
se vêem em exibições circenses, é
como se eu estivesse rodeado de
espelhos feitos de vidro grosso e
distorcido. Quando eles se aproximam de mim, vêem somente o
que está à minha volta, ou suas
próprias invenções e imaginações -tudo e qualquer coisa,
menos a mim".
Tudo isso, sem considerar os
deslizes involuntários e no entanto ativos de caráter racista
cometidos pela própria imprensa, inclusive a Folha.
Para recordar um exemplo
prosaico -mas nem por isso
menos relevante-, felizmente
registrado e criticado com transparência nesta coluna pela ombudsman que me antecedeu, Renata Lo Prete: num teste bem-humorado aplicado aos leitores
em 25 de julho de 1999 para verificar o quanto estes poderiam ser
considerados paulistanos de verdade, uma "inocente" ilustração
sobre violência na cidade trazia
o assaltante como um rapaz negro e a vítima como uma moça
branca, de cabelos claros.
Cobertura pífia
Absurdo corriqueiro, essa invisibilidade se expressa, agora, na
pífia cobertura que vem sendo
dada pela imprensa à preparação da Conferência Mundial
contra o Racismo, a Xenofobia e
Formas Conexas de Intolerância, que começa dia 31 de agosto
e vai até o dia 7 de setembro em
Durban, na África do Sul.
Não só a esse encontro oficial
da Organização das Nações Unidas (ONU), diga-se, mas também ao fórum de organizações
não-governamentais e entidades
que se realizará na mesma cidade, sobre o mesmo tema, antecedendo a conferência, a partir
desta terça-feira.
Quantos leitores sabem que,
há cerca de um ano, inúmeras
reuniões se realizam para preparar o evento, aqui e em inúmeros
países? Quais são as propostas e
os pontos mais polêmicos, em nível internacional? Por que os
EUA vinham ameaçando até há
poucos dias boicotar o evento?
Somente nas últimas duas semanas a Folha começou a atentar, de modo mais sistemático,
para os problemas que serão discutidos em Durban, enquanto
boa parte dos outros jornais do
país continua distante.
Tal indiferença não se manifestou por ocasião de conferências anteriores da ONU, sobre direitos humanos em Viena, em
1993, e sobre direitos das mulheres, em Pequim, em 1995, para
mencionar dois exemplos de
acontecimentos que receberam
ampla cobertura da imprensa,
antes e depois.
Ponto de partida
Evidentemente, o que se discute, aqui, não é apenas o noticiário sobre o encontro da África do
Sul, mas aquilo que está por trás,
à frente e em torno dele, ou seja:
até quando a imprensa, relegando-a a terceiro plano, compactuará com a invisibilidade, com
a existência da discriminação?
A gravidade da interrogação é
ainda maior se se considera que
os preconceitos a serem debatidos incluem aqueles existentes
contra os índios e as chamadas
minorias.
Talvez Durban comece a ganhar mais destaque e atenção da
imprensa nos próximos dias -é
o mínimo que se espera.
Mas seria lamentável, após sua
realização, deixá-lo transformar-se apenas num marco
-como as comemorações dos
300 anos da morte de Zumbi- e
não torná-lo ponto de partida
para reflexão e mudanças na
abordagem da intolerância racial no Brasil pela imprensa.
Próximo Texto: Sempre eles... Índice
Bernardo Ajzenberg é o ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato
de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade
por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor
-recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário
dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Bernardo Ajzenberg/ombudsman,
ou pelo fax (011) 224-3895.
Endereço eletrônico: ombudsman@uol.com.br. |
Contatos telefônicos:
ligue (0800) 15-9000; se deixar recado na secretária eletrônica, informe telefone de contato no horário de atendimento, entre 14h e 18h, de segunda a sexta-feira. |
|