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OMBUDSMAN
Suando na esteira
BERNARDO AJZENBERG
A disputa pelo Planalto começou a ocupar as páginas
dos jornais há cerca de um ano.
De lá para cá, numa conjuntura econômica adversa, a Folha
gastou toneladas de tinta e de
papel; milhares de reais foram
aplicados na logística de produção do noticiário. Jornalistas deram sangue, como se diz, cotidianamente.
Hoje, dia do segundo turno,
acumuladas desde então mais
de 300 edições, é hora de perguntar se o resultado esteve à altura
de todo esse esforço.
Segundo pesquisa publicada
na sexta-feira, a cobertura das
eleições foi avaliada como ótima
ou boa por 93% dos leitores
-taxa que nenhuma publicação séria deixaria de festejar.
Não é da tradição da Folha,
porém, acomodar-se diante de
um retorno positivo como esse
nem se pautar exclusivamente
com base nele. Tampouco o leitor costuma restringir sua interlocução com o jornal a uma resposta de questionário. Cabe ir
mais fundo.
O jornal inovou? Cresceu jornalisticamente? Quais foram
seus grandes momentos?
Inflexões
Este foi um ano em que alguns
veículos operaram inflexões significativas de comportamento.
A TV Globo, caso mais notório,
abriu-se para entrevistas e debates, surpreendendo, às vezes,
com o grau incisivo de questionamento aos candidatos -fórmula evitada no último debate,
registre-se, favorecendo Lula, como para pagar a dívida de 1989.
Numa campanha em que, desde o início, prevaleceu, acima de
idéias e históricos, a imagem dos
adversários, o impacto dessa iniciativa, inédita, foi decisivo.
"O Globo", principal concorrente da Folha em nível nacional, vem há alguns anos experimentando linha editorial mais
independente, e aprofundou-se
nessa direção, deixando visível,
por outro lado, o interesse em
não "incomodar" ninguém.
Como com FHC, o "Estado de
S.Paulo" se posicionou, em junho, a favor de Serra. Seu noticiário, sobretudo nas semanas
seguintes, contaminou-se pela
opção, algo que depois refluiu.
Não quero, aqui, comparar a
Folha com esses concorrentes.
São muito diversas as "personalidades". Mas fica claro que, para se impor, para se diferenciar
nesse quadro, o jornal precisava
apresentar mais do que o básico.
E aí começam os problemas.
Marketing
O marketing tomou conta da
eleição. Blindou candidatos, lapidou discursos, moldou sua
apresentação. Manteve sob controle a atuação do jornalismo.
Ao mesmo tempo, o processo
envolveu vários níveis (deputados, senadores, governador, presidente), o que implicava altos
desafios materiais e editoriais.
Encerravam-se oito anos de
um governo com a base de apoio
dividida, numa situação política
na qual a disputa tendia a adquirir caráter plebiscitário estimulado pela crise econômica.
Entendo que a Folha não se
preparou o suficiente para dar
conta desse panorama complexo. Parece não ter diagnosticado
com profundidade o que poderiam representar essas eleições;
que o marketing político viera
para ficar, não só como propaganda mas como uma forma de
exercício do poder.
Enquanto alguns veículos
avançaram, ela ficou onde já estava. Agitou-se, suou -mas como se fosse numa esteira rolante.
Lacunas
Em contraste com anos anteriores, só as biografias dos candidatos receberam caderno inédito, especial, para além do dia-a-dia do noticiário.
As sabatinas tiveram bom efeito de imagem, mas não romperam a impermeabilidade, o preparo retórico dos candidatos.
O balanço da "era FHC" dispersou-se sob o título "Agenda
da transição" ao longo de vários
dias, sem destaque e, pior, à véspera do segundo turno, quando
pouco contava, após um ano de
campanha. A Folha abdicou do
papel de estimular polêmicas,
fustigar o consenso -opção discutível ante a tática do candidato do governo, justamente de
deixar de lado "o passado".
As eleições a governador ficaram em segundo plano, limitando-se a cobertura à agenda de
candidatos, palavras, debates.
As legislativas foram ignoradas. Surgiram a dias do primeiro
turno, com tratamento amador.
O Datafolha teve quantidade e
abrangência de pesquisas reduzidas, perdendo a primazia. O
jornal obrigou-se a publicar pesquisas de outros institutos, os
quais aproveitaram para comer
parte do bolo de prestígio do
concorrente -apesar de desacertos expostos pelas urnas no
caso de todos.
Houve sensibilidade para dar
atenção à propaganda gratuita e
aos marqueteiros. Eis um aspecto positivo da cobertura.
O mesmo não aconteceu, porém, com episódios curiosos, cuja relevância simbólica não se
captou "a quente": o advento do
"Lulinha paz e amor"; a frase de
Ciro Gomes sobre Patrícia Pillar
"dormir" com ele; o "medo" de
Regina Duarte.
O "buraco negro" dos financiamentos das campanhas, burlas, compromissos que prenunciam -tudo isso foi apenas arranhado. Descobri-lo implicaria
investigação de bastidor, nada
que apareça "de graça" na TV.
Nos últimos dias, quando até o
mercado começava a digerir um
governo Lula, a Folha mostrava
uma hibridez improdutiva. Ora
priorizava, ainda, as campanhas (com a ênfase na retórica e
na agenda dos marqueteiros que
marcou boa parte da cobertura),
ora as articulações de governo.
Entrevistas
Essas lacunas ficam mais evidentes se confrontadas com as
excelentes entrevistas publicadas pouco antes do primeiro turno, por exemplo, com os empresários Eugênio Staub e Antônio
Ermírio de Moraes e o senador
José Sarney.
Também com o material em
parceria com o UOL sobre o site
"Controle Público" (dados de
renda e patrimônio de políticos)
e a "radiografia" do novo Congresso (ainda que, neste caso,
concorrentes tenham saído na
frente em certos aspectos).
Ou, ainda, com as reportagens
sobre concessões de TV no governo FHC, o elo entre o ex-coordenador da campanha de Ciro e a
família de PC Farias, irregularidades em administrações do PT.
Imparcialidade
Essas reportagens remetem a
um tema caro à Folha: a imparcialidade do seu jornalismo.
Ao longo da campanha
-marcada pela imprevisibilidade, ondas e reviravoltas-,
houve oportunidade para muitas oscilações.
Nas críticas internas e nesta
coluna, registrei momentos em
que o jornal pendeu gravemente
para esta ou aquela candidatura, pondo em risco sua credibilidade, chegando a acolher um
Direito de Resposta, inclusive,
em sua capa.
Foi o caso da coluna de 8 de setembro, sobre uma série de edições com tratamento favorável a
Serra num momento crucial, em
que este começava a tirar Ciro
do segundo lugar nas pesquisas.
Ou da de 26 de maio, que mostrava como o jornal subestimara
notícias incômodas para o PT.
Isso sem falar no quase esquecimento a que foi relegada, num
dos maiores equívocos da mídia,
a candidatura Garotinho.
Talvez contrariando legítimas
expectativas de leitores que me
enviaram queixas, penso, no entanto, que não há como "bater
carimbo" sobre o desempenho
da Folha nesse quesito.
Numa longa campanha como
essa, o tema não se presta a afirmações generalizantes, avaliações levianas e apressadas.
Na sexta-feira, o jornal publicou levantamento do Datafolha
que mostrava favorecimento a
Lula no seu noticiário do segundo turno. Surpreendentemente,
em choque com os dados, o título
era "Folha se manteve equidistante no 2º turno" -quase uma
afronta à inteligência do leitor.
Meritório no esforço de construir uma referência objetiva, o
monitoramento tem, no entanto, limitações, certa subjetividade e reflete inclinações que os
acontecimentos impõem, obrigatoriamente, ao noticiário. Jornalismo não é sandália nem sapato. Mesmo assim, não se justificava essa espécie de manipulação, como se o jornal quisesse
sempre, acima de tudo, afirmar
sua isenção.
Uma das lições que essa cobertura oferece é que a busca do
equilíbrio não está em dar uma
no cravo e outra na ferradura,
numa política de compensações.
Ela tem de ser orgânica, presente
em cada texto, em cada edição.
Mesmo que lhe seja custoso, é
dever da Folha, seus jornalistas,
sua direção, fazer um balanço
profundo, para além das estatísticas e dos retornos dos leitores.
O marketing político, repito, já
se instalou. Mais uma vez, prenuncia-se um abraço entre o
Planalto e o Jardim Botânico.
Como a Folha, com sua influência, irá se aparelhar diante
da nova situação? O mínimo que
se espera é que não aborde o novo momento e suas amplas expectativas de modo a deixá-lo,
no futuro, do mesmo jeito que
nele irá entrar.
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Bernardo Ajzenberg é o ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato
de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade
por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor
-recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário
dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Bernardo Ajzenberg/ombudsman,
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