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OMBUDSMAN
Na onda da pedofilia
BERNARDO AJZENBERG
Nenhum pecado mortal
contra a Igreja Católica foi
cometido pela imprensa nos últimos dias, a meu ver, na cobertura sobre os religiosos pedófilos e seus eventuais acobertadores.
O acúmulo de casos desde a
década de 80, em especial nos
EUA, acabou estourando com
tamanha dimensão, a ponto de
seus cardeais e arcebispos terem sido chamados às pressas
ao Vaticano, em grande parte
por responsabilidade da própria instituição, que, em vez de
tratar do assunto abertamente,
com transparência, desde o início, procurou conduzi-lo a portas fechadas. Estas, agora, como aconteceria cedo ou tarde,
estouraram.
Eis um escândalo de ampla
repercussão, envolvendo milhões de pessoas que seguem os
seus dogmas, além de outros
milhões, em dinheiro, sob a forma de possíveis indenizações.
É, portanto, notícia, lá fora e
aqui.
Isso posto, não quer dizer que
a mídia tenha dado ao delicado tema a cobertura mais
exemplar.
Ao contrário, mesclando indevidamente aspectos diversos que
o tangenciam, acabou formando
uma onda que por pouco não
atingiu o patamar de campanha
aberta contra a Igreja ou alguns
de seus princípios.
Misturas
De início, não se exibiram estatísticas que pudessem demonstrar ser maior, proporcionalmente, a incidência de pedófilos
entre os sacerdotes católicos do
que entre religiosos de outras
"correntes" ou credos, ou entre
pediatras e professores, por
exemplo -apenas para mencionar categorias em que a autoridade interpessoal e o relacionamento com crianças também
ocorrem por força do ofício.
Provavelmente porque essas estatísticas simplesmente inexistem.
Misturou-se à questão, também, a obrigatoriedade do celibato e da castidade, como se a
pedofilia tivesse relação automática, de causa e efeito, com essas
polêmicas imposições da Igreja
àqueles que exercem o sacerdócio.
O colunista Contardo Calligaris, na Folha de quinta-feira, resumiu bem a situação:
"Parece que, se os padres pudessem casar-se, não haveria pedófilos entre eles. Para defender
o celibato facultativo, há ótimas
razões, mas não essa. Mesmo
uma mulher dedicada a produzir duas ou três ejaculações por
dia em seu marido pedófilo, no
melhor dos casos, conseguiria
distraí-lo, eventualmente cansá-lo, mas não transformá-lo".
O jornal abordara a questão
na edição de domingo passado,
mas de forma um tanto desequilibrada: houve, por exemplo, um
artigo contrário ao princípio do
celibato obrigatório, enquanto as
opiniões favoráveis se limitaram
a declarações dispersas em alguns textos.
Se era para acoplar o tema à
cobertura dos casos de pedofilia,
à imprensa caberia ao menos dar
espaço para um debate mais amplo e promovido de modo imparcial.
Trampolim
Outra mistura que ficou "no
ar" e nas entrelinhas diz respeito
a uma suposta relação direta entre pedofilia e homossexualismo
-jamais comprovada, ao que se
saiba, cientificamente.
De novo, não vi veículo de comunicação que a tivesse feito
abertamente, mas a simples edição de reportagens sobre casos de
padres gays com aids em conjunto com os casos de pedofilia se encarrega, aos olhos do leitor médio, de promover o embraralhamento de tudo num único saco.
Reuniu alhos com bugalhos,
também, o noticiário de quinta-feira sobre o padre suspenso pela
Diocese de Franca (SP) por ter,
conforme afirma o bispo local,
engravidado uma moça de 16
anos de idade.
O "Jornal do Brasil" chegou a
dar à matéria o título de "Bispo
confirma caso de pedofilia em
SP".
Ora, a julgar pelos próprios fatos reportados, trata-se de um
caso que poderia ser enquadrado
como corrupção de menor. Mas,
até que surja fato novo ou prova
em contrário, não há nele marcas típicas de pedofilia, distúrbio
que pressupõe ações repetidas, ao
longo do tempo, de abuso sexual
contra crianças até 14 anos de
idade.
A Folha não chamou o padre
de pedófilo, mas involuntariamente deu margem para a confusão ao editar um quadro, sob o
título "Relações perigosas da
Igreja no Brasil", que junta este
caso a outros três notoriamente
de pedofilia.
O editor de Cotidiano, Nilson
de Oliveira, entende que não
houve distorção.
"A informação é de que esse
padre mantinha relações sexuais
com a menina desde quando ela
tinha 13 anos de idade", argumenta. "Se isso se confirma, o caso poderá ser tipificado, tecnicamente, como pedofilia".
De fato, o texto da Folha afirma que "boatos" sobre o relacionamento entre os dois começaram quando a garota tinha
aquela idade. Mas faltava, até
sexta-feira, comprovar a boataria.
Mais uma vez: as diferenças na
prática entre uma coisa e outra
podem ser sutis, pequenas, talvez
insignificantes diante do quanto
ambas são abjetas, mas elas existem e devem ser consideradas
com clareza nos jornais.
Que os meios de comunicação
devam dar muita importância,
com cobertura crítica, aos casos
de pedofilia na Igreja, não resta a
menor dúvida.
Que, assim como qualquer instituição religiosa ou não, a Igreja
deveria adotar atitudes mais
consequentes de modo a inibir
esse desvio entre seus membros, é
óbvio.
Mas todo cuidado também
precisa ser tomado pela imprensa para não transformar o noticiário sobre essas graves revelações em trampolim privilegiado
para a alimentação de preconceitos ou para a pregação de
uma ou outra ala entre as inúmeras que proliferam na Igreja
católica, em seu entorno ou até
mesmo do lado de fora, contra
ela.
Participo de hoje a quarta-feira do encontro da Organization
of News Ombudsmen (ONO),
realizado desta vez em Salt Lake
City (EUA).
A reunião, constituída por dezenas de ouvidores de órgãos de
imprensa de vários países, acontece todos os anos.
Durante a semana que entra, o
atendimento aos leitores permanecerá, aos cuidados da secretária do departamento de Ombudsman, Rosângela, que dará
encaminhamento aos casos de
maior urgência.
Retomarei a correspondência,
normalmente, a partir da segunda-feira, dia 6 de maio.
A coluna volta a ser publicada
no dia 12. Até lá.
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Bernardo Ajzenberg é o ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato
de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade
por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor
-recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário
dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Bernardo Ajzenberg/ombudsman,
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