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OMBUDSMAN
Mosca na sopa
BERNARDO AJZENBERG
Ao ler a Folha quarta-feira,
captei um erro ortográfico
chato. Foi no texto em que Pedro
Malan comentava a "Carta ao
Povo Brasileiro", divulgada pelo
candidato do PT à Presidência,
Luiz Inácio Lula da Silva.
Atribuía-se ao ministro da Fazenda a seguinte declaração: "Só
posso saldar isso [a postura de
Lula" como algo positivo...".
Anotei o erro -o certo seria
"saudar", com "u"- para comentá-lo em crítica interna.
Pouco depois, um fax chegou, e,
nele, um assinante do jornal se
dizia "estarrecido". "Essa é de
lascar", reclamava. E, após sugerir "um cursinho de português"
ao responsável, concluía: "Leitor
da Folha há meio século, fico
triste de ver esses escorregões".
Alertar para erros de português não está entre as atribuições principais do ombudsman.
O jornal tem um programa específico para isso. O tal fax, porém,
deixou claro que erros de forma
(gramática, digitação, linguagem) podem ser tão irritantes e
agressivos para com os leitores
quanto os chamados erros de
conteúdo (informação equivocada, por exemplo).
O problema ganhou dimensão
maior, na última semana, devido também a outros tropeços.
Na segunda, texto de orientação a investidores começava assim: "Não haja sob impulso". Isso mesmo, com agá (verbo haver), quando o correto seria aja
(de agir).
Na terça, outro deslize, na boca do líder palestino Iasser Arafat: "Israel, com esses contínuos
ataques, está revelando ao mundo quais são suas reais intensões". Com "s" em vez do "ç".
Conversei com o professor Pasquale Cipro Neto, colunista do
jornal, sobre esses casos. Para
ele, erros desse tipo não decorrem obrigatoriamente da ignorância. Podem ser fruto de um
fenômeno de condicionamento
da memória do jornalista, que,
na pressa do fechamento da edição, prioriza um registro automático derivado da incidência
maior ou menor do uso dessa ou
daquela palavra.
No caso do "haja", por exemplo: como as pessoas costumam
usar muito mais a palavra "haja" do que "aja", o "piloto automático" da escrita apressada
acaba privilegiando a primeira
(incorreta). O mesmo valeria em
saudar/saldar.
No terceiro caso, há uma diferença, já que, embora a palavra
intensões (com "s") exista (sinônimo de intensidade, veemência,
segundo o "Aurélio"), ela é de
uso quase nulo.
Qualidade
Depois de lembrar que o jornal
extinguiu a figura do "revisor"
desde os anos 80, o coordenador
do Programa de Qualidade da
Folha, Rogério Ortega, explica
que, para a empresa, "os jornalistas têm de se responsabilizar
pela correção das informações e
da linguagem, e não delegar essa
responsabilidade a terceiros".
As atividades do PQ, diz ele,
têm caráter "fortemente preventivo". Um resumo delas: os erros
são repassados às editorias; todos têm metas a cumprir; jornalistas são avaliados e premiados
também com base nisso; há um
"mural" na Redação voltado para erros graves; uma professora
dá assistência sete horas por dia;
à disposição, existem, ainda, o
dicionário "Aurélio" eletrônico,
um corretor ortográfico e obras
de referência.
Segundo Ortega, o jornal mantinha em junho o seu melhor desempenho deste ano (a média de
erros/coluna caiu de 0,62 em
março para 0,50).
Como é possível que, mesmo
com todo esse aparato, ainda se
cometam erros crassos?
Para o coordenador, isso "resulta de um misto de desatenção
no trabalho de fechamento e deficiências culturais básicas de alguns jornalistas".
A avaliação faz sentido, mas
não basta ir por aí. Os casos que
mencionei (veja o quadro acima), surgidos um em seguida ao
outro, expõem uma vulnerabilidade mais profunda.
Mais do que individualizar os
erros -algo necessário-, trata-se de recuperar uma cultura da
excelência, um grau de exigência
superior, incorporado pelas
equipes e em cada profissional.
Como explicar que esses três erros, por exemplo, forjados na
chamada edição nacional (que
fecha por volta das 20h), tenham
sobrevivido na edição SP/DF (fechada em torno das 23h)?
Ou seja: mesmo que as causas
tenham sido o "piloto automático" ou a pressão do tempo, e não
as "deficiências culturais básicas", três horas havia para reler o
material e fazer correções -o
que não aconteceu.
Cabe perguntar até que ponto
o tal "piloto automático" se faz
presente apenas no lapso individual de quem concebe o texto; se
ele não se aloja, também, no sistema de exigências (ou na insuficiência destas) administrado em
esferas mais amplas, coletivas,
da Redação.
Por mais que seja isolado ou
que se o considere, às vezes, menos importante, para muitos leitores o erro crasso de português é
mosca na sopa: estraga toda a
leitura do jornal do dia.
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Bernardo Ajzenberg é o ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato
de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade
por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor
-recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário
dos meios de comunicação.
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