|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
O desarmamento e o referendo
MARCO MACIEL
O Senado Federal, durante a convocação extraordinária, deu passo
significativo no sentido de priorizar a
discussão de uma questão que é nacional: como melhorarmos o desempenho
de nossas instituições, sobretudo as ligadas à segurança pública, oferecendo
ao país um conjunto de medidas voltadas para a redução da criminalidade.
Como resultado desse esforço, foi
aprovado o projeto de lei nº 292/99, agora submetido à apreciação na Câmara.
Entre outros dispositivos, o texto proíbe, em seu artigo 28, a comercialização
de arma de fogo e munição no território
nacional, salvo para as entidades que especifica. Convém destacar, contudo, o
que estabelece o parágrafo único do artigo: "Esse dispositivo, para entrar em
vigor, dependerá de aprovação por referendo popular, a ser realizado, em data
não fixada, em outubro de 2005".
Se é verdade que o uso do referendo
reflete a história e as tradições de cada
país, ao analisarmos a história do Brasil
verificamos que, ao longo dos 114 anos
da nossa vida republicana, somente em
duas oportunidades recorremos à realização desse tipo de consulta popular:
em janeiro de 1963 e em abril de 1993.
A primeira vez, quando o país vivia
uma grande crise institucional, decorrente da renúncia de Jânio Quadros e da
posterior posse de João Goulart. À ocasião, realizou-se um referendo sobre a
manutenção ou não do sistema de governo em vigor -um pseudoparlamentarismo, aliás. A segunda, em virtude de determinação contida na Carta
Constitucional de 1988. O eleitorado,
pela sua imensa maioria, manteve a República uma atitude coerente com a
"Constituição cidadã", e o presidencialismo como forma de governo.
Sabe-se também que, em todo o mundo, o recurso a tais formas de consulta
popular só se realiza em casos de grande
relevância. Vale a pena exemplificar:
Em 1945, Winston Churchill propôs a
Clement Attlee, líder da oposição, que
se fizesse uma consulta para ver se a sociedade inglesa considerava importante
manter a coalizão de forças que governava o país. A Inglaterra vivia enormes
problemas decorrentes do pós-guerra,
mas Attlee recusou a proposta e a consulta não aconteceu.
A França recorreu a tais instrumentos
em dois momentos significativos de sua
história recente: em 1962, para reformar
a constituição da 5ª República, estabelecendo a eleição direta do presidente e
instaurando o regime semipresidencialista, que vigora até hoje, dando início à
"coabitação"; e 30 anos depois, com a
decisão de François Miterrand de convocar um referendo sobre o Tratado de
Maastricht, que quase levou ao colapso
da União Européia, quando somente
51% dos eleitores se manifestaram favoravelmente à sua ratificação.
Na extinta União Soviética realizou-se, em 1991, o referendo proposto por
Gorbatchov para a criação da CEI (Comunidade de Estados Independentes).
Posteriormente, com a deposição de
Gorbatchov e a ascensão de Yeltsin, 17
Repúblicas abandonaram a CEI, que se
transformou na atual Rússia -onde,
em 1993, houve dois referendos: o primeiro para aprovação de eleição direta
para presidente, voto de confiança em
Yeltsin e aprovação da política econômica (privatizações); e o segundo para
aprovação da nova Constituição.
A proibição da comercialização de arma de fogo é uma matéria que cabe privativamente ao Congresso dispor
|
Já os Estados Unidos nunca realizaram consultas plebiscitárias em nível federal, embora a prática seja muito adotada em condados e em alguns Estados.
Favorável a medidas destinadas a ampliar a participação popular, tendo inclusive apresentado projeto regulamentando o artigo 14 da Constituição, que
dispõe sobre o assunto, entendo que esses mecanismos só devem ser exercitados quando estamos diante de problemas de grande expressão, que justifiquem o recurso ao sufrágio popular.
Umberto Eco, em artigo intitulado
"Votação no Ciberespaço" -publicado
em 1997, quando se discutia os passos e
os avanços que a União Européia vem
adotando-, refere-se a uma "noção
idealizada da democracia ateniense" como paradigma de democracia direta e
traça um paralelo com os anseios da sociedade moderna, ao destacar o papel
do referendo como instrumento de participação política: "O que traz o referendo para as discussões é a possibilidade
de interpelar todos os cidadãos sobre algumas questões excepcionais, nas quais
o juiz supremo deve ser o senso comum
(...), mas não sobre problemas que exigem competência específica e, muitas
vezes, técnica". Ilustrativamente, Eco
refere-se à capacidade limitada do cidadão de formar opinião questionando a
si mesmo: "Por que não consegui formar uma opinião a esse respeito, mesmo sendo uma pessoa culta?". E responde, em seguida: "Porque tenho capacidade de adquirir informações em certos
setores, mas não em outros (...) Eles [os
parlamentares] têm tempo para formar
uma idéia competente sobre essas questões e também o dever de fazê-lo".
De mais a mais, um referendo tem um
custo financeiro muito alto. Somos hoje
mais de 115 milhões de eleitores, e certamente seremos muitos mais em 2005.
Some-se a tudo isso o fato de que uma
consulta dessa natureza pressupõe também uma prévia campanha de esclarecimento, semelhante a uma eleição.
Por fim, a proibição da comercialização de arma de fogo e munição é, a meu
ver, uma matéria que cabe privativamente ao Congresso dispor no exercício
de sua prerrogativa de legislar. Daí considerar, por todos os títulos, desnecessário o Congresso Nacional aprovar a realização do mencionado referendo.
Marco Maciel, 63, é senador pelo PFL-PE. Foi vice-presidente da República (1995-1998 e 1999-2002).
Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: José Saulo Pereira Ramos: Os sem-teto do Poder Judiciário
Índice
|