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TENDÊNCIAS/DEBATES
A guerra e o direito internacional
JAKOB KELLENBERGER
Os fatos ocorridos no Iraque e em
outros conflitos armados recentes
não nos deixam esquecer que a dignidade essencial dos seres humanos com
freqüência é uma das primeiras baixas
das guerras. Crimes diversos são cometidos contra civis, contra combatentes
feridos e doentes e contra pessoas privadas de sua liberdade em conflitos armados em todo o mundo. Isso acontece
apesar de existir apoio quase universal
para as Convenções de Genebra, os tratados que estão à base do direito humanitário internacional, que obriga todas
as partes em um conflito a protegerem a
vida e a dignidade de pessoas que não
são combatentes ou já o deixaram de
ser. Os fatos chocantes envolvendo detidos na prisão de Abu Ghraib, no Iraque,
infelizmente constituem apenas um
exemplo da violação dessas leis e dos valores que elas representam.
Para fazer frente às violações do direito humanitário internacional cometidas
em conflitos armados, não basta simplesmente afirmar da boca para fora a
proteção à vida e à dignidade humanas.
É perturbador observar com que freqüência as violações do direito humanitário internacional são menosprezadas,
qualificadas como ""danos colaterais"
-por sinal, um termo chocante quando aplicado a seres humanos- ou pura
e simplesmente justificadas como resultados aparentemente inevitáveis da
busca por segurança.
Com freqüência, o compromisso, assumido por governos, exércitos, grupos
rebeldes e outras organizações, de respeitar os princípios do direito humanitário não passam de retórica vazia que
visa encobrir as violações dessas leis. No
entanto essas leis foram criadas especificamente para levar em conta tanto as
necessidades legítimas de segurança
dos Estados quanto a obrigação de proteger a vida humana e os direitos humanos básicos. O Comitê Internacional da
Cruz Vermelha (CICV) está convencido
de que é possível alcançar um equilíbrio
entre as duas coisas. É possível controlar um território e, ao mesmo tempo,
respeitar sua população; e é possível
prender as pessoas que põem a ordem
pública em risco e, ao mesmo tempo,
respeitar sua integridade física e espiritual e não as degradar nem humilhar.
O fato de que o CICV trabalha de maneira inteiramente independente de Estados e outros participantes permite-lhe
monitorar de maneira digna de crédito
até que ponto esses participantes respeitam suas obrigações sob o direito humanitário internacional. O CICV analisa as alegadas violações dessas leis em
locais de detenção e as relata às autoridades responsáveis, sugerindo mudanças ou exigindo melhoras, quando preciso. Seus contatos diretos e confidenciais com autoridades permitem ao
CICV realizar visitas regulares e repetidas a prisões e campos de detenção e,
com isso, prestar ajuda direta a prisioneiros cujos direitos possam ter sido
violados. No ano passado, delegados do
CICV visitaram quase 470 mil detidos
em 80 países, a maioria deles distante da
atenção da imprensa. No momento em
que escrevo este artigo, nossas equipes
no Iraque continuam a visitar prisioneiros detidos pelas forças da coalizão,
sempre com vistas a assegurar o respeito pela vida e os direitos daqueles que
estão privados de liberdade.
A luta contra o terrorismo só pode ser legítima enquanto não solapar os valores básicos comuns
à humanidade
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Desde os ataques terroristas de 11 de
setembro de 2001 nos EUA, os atos que
visam espalhar o terror entre civis e as
medidas tomadas para impedi-los assumiram uma nova dimensão. Atos terroristas que alvejam e massacram civis de
maneira indiscriminada constituem
uma negação direta dos valores fundamentais que estão à base do direito internacional. O CICV condena tais crimes sem reservas. Também insiste em
que a resposta a eles precisa ser conduzida nos limites estabelecidos pelo direito internacional. Quando a luta contra o
terror equivale a um conflito armado, os
Estados têm a obrigação de respeitar os
princípios do direito humanitário internacional, mesmo que sua própria segurança esteja em jogo. Isso significa que
pessoas privadas de sua liberdade não
podem ser detidas e interrogadas fora
de um contexto legal apropriado.
Alguns comentaristas parecem pensar que a ameaça do terrorismo justifica
um enfraquecimento do direito internacional. Eles argumentam que a lei deve voltar-se em primeiro lugar à promoção das necessidades de segurança dos
Estados e que a proteção legal dos indivíduos contra abusos de sua dignidade
deve ser reduzida no interesse de prevenir atos terroristas. Discordo. Qualquer
conjunto de leis precisa ser reavaliado
continuamente e revisto para assegurar
a continuidade de sua relevância. O direito humanitário internacional não
constitui exceção a essa regra, e o CICV
está envolvido em discussões com governos e especialistas para assegurar
que permaneça relevante. Mas jamais
concordaremos com o enfraquecimento dos dispositivos legais que protegem
os direitos das pessoas envolvidas em
conflitos armados.
A luta contra o terrorismo só pode ser
legítima enquanto não solapar os valores básicos comuns à humanidade. O
direito à vida e à proteção contra o assassinato, a tortura e os tratamentos degradantes precisam estar ao cerne das
ações de todos os envolvidos nessa luta.
Esta perderá sua credibilidade se for utilizada para justificar atos que, de outro
modo, seriam vistos como inaceitáveis,
tais como a morte de pessoas que não
participam das hostilidades.
O mundo não deveria precisar de fotos de torturas e maus-tratos de prisioneiros para lembrar que a proteção à vida e à dignidade humanas é preocupação de todos e requer ação.
Jakob Kellenberger é presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha desde 2000. Foi
secretário de Estado das Relações Exteriores da
Suíça (1999).
Tradução de Clara Allain
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