São Paulo, domingo, 08 de dezembro de 2002

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As viagens internacionais dos presidentes eleitos

SÉRGIO DANESE


As viagens do presidente eleito já constituem uma tradição republicana no Brasil

As viagens do presidente eleito já constituem uma tradição republicana no Brasil. Ela remonta a Campos Salles, já ocupa lugar próprio na história diplomática brasileira e merece ser recordada neste período de transição, em que o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, cumpre uma importante agenda externa.
Campos Salles deu um tom pragmático à sua longa viagem de presidente eleito a cinco países europeus (abril a agosto de 1898). Seu objetivo foi negociar, em Londres, o "funding loan" -o empréstimo-ponte- que permitiria ao seu austero governo sanear as contas públicas nacionais, exauridas em menos de dez anos de turbulento início do regime republicano. Graças a esse êxito, Campos Salles pôde deixar ao seu sucessor, Rodrigues Alves, um legado de estabilidade econômica, essencial para a consolidação do regime republicano civil. Adicionalmente, reforçou a incipiente inserção da República no cenário diplomático mundial e firmou a sua própria vocação diplomática, que o levaria a realizar a visita oficial à Argentina em 1900, a primeira de um chefe de Estado brasileiro ao exterior.
Epitácio Pessoa realizou uma viagem de presidente eleito "sui generis". Eleito pela máquina partidária da República Velha enquanto ainda estava na Europa chefiando a delegação brasileira à Conferência de Versalhes, em 1919, Pessoa "esticou" sua permanência com um giro por capitais européias em visita protocolar. Manteve a linha de perfil baixo e reativo que seria a marca da diplomacia presidencial da República Velha depois de Campos Salles, sombreada pela diplomacia de Rio Branco, chanceler-estadista de quatro presidentes.
Juscelino inaugurou o padrão moderno de viagem do presidente eleito no Brasil -a busca de alavancagem internacional para o projeto econômico do novo governo e a realização do seu marketing político dirigido aos governos e agentes econômicos e sociais vistos como cruciais para as novas políticas. Concebeu, com o Itamaraty, uma viagem de três semanas que o levou, em janeiro de 1956, a Londres, Berlim, Paris, Roma, Madri, Lisboa, Haia, Bruxelas, Washington e Santo Domingo. Bem recebido nos meios oficiais e privados, apresentou seu plano de metas a governos e empresários e advogou, com êxito, a vinda de capitais industriais para participar do novo impulso desenvolvimentista que daria ao Brasil. A viagem livrou-o de pressões clientelistas internas e mostrou-o disposto a manter elevado seu perfil na área externa, mesmo dentro dos estreitos limites da diplomacia brasileira de então.
Jânio Quadros fez uma viagem de caráter simbólico antes da posse -Egito e Cuba-, antecipando a sua fugaz política externa e deixando claro que optava por uma gestualística destinada a compensar, na diplomacia, a sua política econômica ortodoxa e austera.
Caberia a Tancredo Neves retomar o esboço de tradição anterior a 1964 ao realizar, em fins de janeiro e início de fevereiro de 1985, um longo périplo por diversas capitais européias, EUA, México, Peru e Argentina. Era a estréia internacional da Nova República, e o interesse que o Brasil despertava com a redemocratização abriu a Tancredo todas as portas. A visita, cujo relato brevemente disponível com a publicação de "Diário de Bordo", o notável registro da viagem pelo embaixador Rubens Ricupero, foi apropriadamente definida por Celso Lafer como "o momento presidencial de Tancredo Neves". O então futuro presidente pôde apresentar-se ao mundo e ao Brasil exercendo já uma das atribuições básicas da Presidência, o comando da diplomacia e a representação internacional do país. Valorizando o feito da redemocratização e a normalização plena da inserção externa do país, a visita rendeu apoio político para administrar o que se sabia que ia ser uma difícil situação econômica e permitiu a Tancredo escapar das pressões inerentes à obra de engenharia política que foi a constituição do seu ministério.
Com Tancredo se firmaria o padrão Campos Salles/JK de viagem de presidente eleito, voltada para objetivos práticos de natureza política e econômica, sobre o padrão Epitácio Pessoa, de natureza puramente protocolar. Collor o seguiria, realizando uma longa viagem para apresentar as linhas básicas do seu projeto de abertura da economia e de ampliação dos compromissos brasileiros em matéria de não-proliferação e direitos humanos.
O presidente Fernando Henrique Cardoso não realizaria uma viagem extensa nos moldes de JK e Tancredo, mas inovaria ao participar, como presidente eleito, ao lado do ex-presidente Itamar Franco, de dois importantes compromissos da diplomacia presidencial da época, a Cúpula Hemisférica de Miami, onde seria lançado oficialmente o projeto da Alca, e a Cúpula do Mercosul de Ouro Preto, que consolidaria o projeto da união aduaneira.
Produto natural de uma longa transição entre a eleição e a posse do novo presidente, as viagens do presidente eleito no Brasil obedeceram em geral a objetivos de relevo para a diplomacia: fazer gestos de cortesia para algumas capitais, apresentar planos de governo aos principais parceiros do país, estabelecer o universo básico de prioridades externas da nova administração, colocar o novo mandatário em contato com seus homólogos e principais interlocutores externos (incluindo grandes agentes econômicos, mundo acadêmico e ONGs) ou negociar temas concretos, mesmo que preliminarmente.
Ao longo da história diplomática brasileira, essas viagens ganharam o caráter, hoje consagrado, de uma prática bem aceita internamente e, em geral, muito bem recebida pelos parceiros contemplados no roteiro de visitas. O próprio Brasil, aliás, tem também uma longa e cada vez mais intensa prática de receber visitas de presidentes eleitos, sobretudo de países vizinhos. Espécie de pré-estréia do mandatário na cena internacional, ato inaugural da sua diplomacia presidencial, as viagens do presidente eleito têm servido para calibrar tanto a substância da sua diplomacia pessoal quanto a sua forma, o seu estilo, a sua visão de mundo. Permitem expor e explicar um novo governo e seus compromissos, internos e internacionais, em um momento de grande visibilidade, força política, interesse e expectativa, em especial se a dimensão externa for parte considerável da equação de êxito do novo mandatário. Em suma, um instrumento útil, já consagrado, para orientar a política externa.

Sérgio França Danese, 47, é ministro na Embaixada do Brasil em Buenos Aires e autor de "Diplomacia Presidencial"(Topbooks)


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