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TENDÊNCIAS/DEBATES
Você vai assistir à Olimpíada de Pequim?
SIM
A Olimpíada é a vida - melhorada
MOACYR SCLIAR
VOU, SIM , assistir à Olimpíada
(pela tevê, naturalmente). Vou
torcer por nossos atletas. Vou
vibrar e sei que, em alguns momentos, vou me emocionar. Por quê? De
onde tiro essa certeza, que é a de milhões de pessoas em todo o mundo?
No meu caso, a resposta está num
nome, hoje pouco lembrado: Abebe
Bikila. Etíope, ex-pastor de ovelhas e
depois militar, foi o primeiro atleta a
vencer duas maratonas olímpicas e é
considerado por muitos o maior maratonista de todos os tempos.
Bom, vocês dirão, grandes atletas
existem, isso não chega a ser novidade. Mas Bikila era diferente. Esse homenzinho pequeno, magro, franzino,
nascido em um dos países mais pobres do mundo, assombrou o público
na maratona de 1960, em Roma, porque correu pelas ruas da cidade eterna descalço. Isso mesmo, descalço. E,
descalço, ele chegou quatro minutos
antes do segundo colocado; descalço,
declarou que poderia correr mais dez
quilômetros sem problemas.
Na maratona seguinte, em Tóquio,
ele convalescia de uma cirurgia de
apêndice realizada cinco semanas antes. Mas correu, e novamente venceu.
Dessa vez teve de usar tênis por imposição dos juízes. E só não venceu a terceira maratona, na Cidade do México,
porque, depois de correr 17 quilômetros, fraturou a perna esquerda e teve
de desistir.
Uma outra e irônica tragédia o
aguardava. Em 1969, dirigindo o carro
que ganhara do governo, teve um acidente que o deixou paralisado do pescoço para baixo. Os pés o consagraram, um automóvel foi a sua nêmese,
o instrumento de sua desgraça.
Olimpíadas são eventos mundiais.
Conotações sociais, políticas, ideológicas são inevitáveis; boicotes e até
atentados (Munique, 1972: 11 atletas
israelenses mortos por terroristas)
podem ocorrer. Já em 1936, Hitler
tentara transformar a Olimpíada de
Berlim num vasto espetáculo de propaganda nazista. Mas algo estragou,
ainda que parcialmente, o deleite dos
arianos: o fato de o atleta americano
Jesse Owens ter ganho quatro medalhas de ouro nas provas de corrida.
Como Abebe Bikila, Jesse Owens
era negro; neto de escravos, filho de
um humilde trabalhador agrícola.
Bikila e Owens não foram, e não
são, casos isolados. Para milhares de
jovens, inclusive e principalmente no
Brasil, o esporte, e sobretudo o esporte olímpico, é o caminho da auto-afirmação, da restauração da dignidade
pessoal. E o instrumento para isso é
aquilo que o ser humano possui de
mais autêntico: o próprio corpo.
É o corpo que tem de responder ao
desafio. Na verdade, o atleta não está
só competindo com outros; está competindo consigo próprio. Está pedindo a seu tronco, seus braços, suas pernas, seus músculos, seus nervos que o
ajudem a mostrar aos outros o que ele
vale. Quando o peito do corredor
rompe a fita na chegada da prova, não
se trata apenas de uma vitória mensurável em minutos e segundos. Trata-se de libertação. É o momento em que
a pessoa se liberta da carga pesada representada por um passado de pobreza, de privações, de humilhação.
Vocês dirão que o esporte não corrige as distorções, não redistribui a
renda. Mas corrige distorções emocionais e sociais, representadas pelo
preconceito; e redistribui auto-estima. É pouco? Talvez seja, mas é um
primeiro passo.
E nós? Nós, os espectadores, sentados em nossas poltronas, diante da tevê? Para nós, a Olimpíada é igualmente importante. Não só porque representa um puxão de orelhas no sedentário ("Puxa vida, está na hora de eu
começar a caminhar pelo parque"),
coisa que ajuda a saúde pública, mas
também porque, de algum modo, participamos no que ocorre nos estádios.
Sabemos que a vida é dura, cheia de
problemas. Mas então pensamos no
Abebe Bikila correndo de pés descalços sobre as pedras de Roma. Pensamos no que são as solas daqueles pés,
enrijecidas por anos de caminhada e
corrida sobre pedregulhos, sobre áspera areia, sobre espinhos. São um
símbolo de resistência, esses pés. São
pés que, transportando gente humilde, levam-nas longe no caminho da
esperança, fazem-nas subir ao pódio
de onde se pode, ao menos por um
momento, divisar novos horizontes.
MOACYR SCLIAR, 71, médico e escritor, é membro da
Academia Brasileira de Letras e colunista da Folha. É autor, entre outras obras, de "O Texto, ou: A Vida".
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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