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TENDÊNCIAS/DEBATES
Déficit político
EDUARDO PORTELLA
Mais uma eleição com tudo o que
ela, em si mesma, contém de significativo. E isso deve ser levado em
consideração. Não se pode dizer que venha a constituir substancial avanço
qualitativo da vida democrática. De modo nenhum. O que se observa, sem muito esforço, é antes a impugnação do trabalho político em favor dos respectivos
arranjos eleitorais. A prometida reforma política continua sendo adiada, os
partidos de aluguel prosperam, os baixos níveis de legitimidade nunca se alteram. Uma unanimidade contudo se
mantém de pé, nacional e internacionalmente: somos medalha de ouro na
olimpíada da desigualdade social. Sem
levar muito em conta que jamais haverá
redistribuição de renda sem distribuição equânime do poder político.
Assistimos mais ou menos perplexos
ao trânsito vertiginoso do que fora, mal
ou bem, a sociedade do trabalho para a
sociedade do espetáculo e, provavelmente, para a sociedade do escândalo.
A sociedade do espetáculo recebeu no
Brasil uma versão mitigada, na qual se
destacam os marqueteiros e as duplas
sertanejas, todos incapazes de distinguir meios e fins.
A completa ausência de imunologias
críticas facilita a contaminação e debilita o espaço público. E, debilitado, ele
consome cegamente todo e qualquer artefato midiático. É o paraíso insosso, alimentando a orgia espetacular. Com
efeito, o escândalo não deixa de ser a encenação histriônica do espetáculo. Porém tão estridente e malicioso que termina apagando o que foram as luzes da
ribalta. O escândalo vem se fazendo íntimo, natural, familiar mesmo. Já não
comove nem exaspera. Mergulhou no
lodo tranqüilo da banalização. Lodo vivo. E, quando se associa à impunidade,
fortalece-se e se multiplica. São componentes mistificados de farsa e burla introjetados na cena pública e, conseqüentemente, na vida cotidiana. A mídia eletrônica, mais até do que as outras,
reproduz pontualmente, e quase nunca
pedagogicamente, esse mórbido prazer
do escândalo.
O eletroencefalograma dessa doença
politicamente correta explica a proteção
do escândalo ou da fraude publicitária.
Quando perdemos as referências éticas,
desaparece com elas a distância entre o
espetáculo e o escândalo. Só que o espetáculo é aético, enquanto o escândalo é
antiético. Em qualquer hipótese, não
nos deve causar estranheza quando a
sociedade do puro divertimento, do entretenimento absoluto, abre passagem
para a sociedade do escândalo.
Tudo isso termina sendo efeito da ausência do debate político qualificado e
idôneo. Fica difícil ou impossível avançar sem a ansiada, e jamais ociosa, reforma política. Caso contrário teremos
de suportar a alta cotação do escândalo
na bolsa de valores da aventura eleitoreira. Já se pode divisar uma espécie de
tipologia do escândalo: escândalos apurados, abafados, produzidos, falsificados. O que não se conseguiu ainda foi
separar a fraude do escândalo, do escândalo fraudado. E não é justo culpabilizar o Ministério Público nessa matéria
em que todo cuidado é pouco.
O Executivo e o Legislativo necessitam dialogar mais, abertamente, chegar
a um acordo sobre medidas permanentes, em vez de monologar sobre medidas provisórias. O Judiciário, ao que tudo indica, não atravessa um bom momento. Fato preocupante para qualquer
democracia, especialmente aquelas em
lenta construção.
Quando perdemos as referências éticas, desaparece com elas a distância entre o espetáculo e o escândalo
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Enquanto isso, a sociedade, refém do
espetáculo e do escândalo, procura entender as coisas, emaranhada em um
excepcional déficit político. Falta política ao desempenho político. A cidadania
se esmaece no lusco-fusco dos refletores
que, em alta voltagem, fabricam a duvidosa "cibercidadania". O pacto perverso entre cultura do entretenimento oco
e fundamentalismo de mercado se sente
estimulado. É nesse clima propício que
se sucedem as mais diversas e disfarçadas formas de dirigismo cultural. Tem
sido assim, em várias partes do mundo.
E o remédio jamais foi encontrado na
proscrição do político, porém na sua intensificação, no alargamento tenaz do
espaço público, na democratização do
direito à imagem e ao som. Sem que o
governo monopolize nem o Estado nem
a sociedade.
Como se não bastasse todo esse conjunto de adversidades, destaca-se hoje a
perigosa aliança de religião e mídia eletrônica. É o modelo showmício se generalizando. É o "reality show" invadindo
todas as camadas da vida social e vendendo, por preços módicos, espetáculos
e escândalos. Com alguns agravantes. O
escândalo, por exemplo, tem memória
curta. O brasileiro também. E, quando
se juntam o escândalo e o brasileiro, a
amnésia se alastra assustadoramente.
Da amnésia à deliqüescência o passo é
pequeno. Passamos a repetir velhos números de um repertório caduco. Tudo o
contrário da invenção política. Já é hora
de cuidarmos do nosso déficit -democrático.
Eduardo Portella, 72, escritor e professor emérito da UFRJ, membro da Academia Brasileira de
Letras, é presidente do Comitê Caminhos do
Pensamento e do Fundo Internacional para a
Promoção da Cultura, da Unesco. Foi ministro da
Educação, Cultura e Esportes (governo João Figueiredo), diretor-geral-adjunto da Unesco
(1988-1993) e presidente da Conferência Geral
da Unesco (1997-1999).
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