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TENDÊNCIAS/DEBATES
Chutando a escada
JOSÉ SERRA
O controle da televisão foi uma
das questões mais discutidas durante a primeira campanha eleitoral para o Parlamento polonês na qual concorreram os candidatos do movimento
Solidariedade. O regime comunista desmoronava. Graças à indiscrição de um
veterano membro do partido, soube-se
que os dirigentes, antecipando a vitória
da oposição, temiam o poder da televisão livre do controle do Estado a ponto
de um deles, em uma reunião, ter feito
um desabafo notável: "Nós lhes daremos a tropa de choque, antes de dar-lhes a televisão". Um opositor deu-lhe
toda a razão: "Eu preferia ficar com a televisão".
Esse episódio, contado por Christopher Garton Ash em seu livro "Nós, o
Povo", no qual narra a revolução de
1989 em Budapeste, Varsóvia, Berlim e
Praga, reflete um fenômeno que começou no século 20 e que tem se aprofundado. Para capturar corações e mentes,
nos tempos atuais, mais vale controlar a
mídia, em particular, e a produção cultural, em geral, do que dispor da força
bruta. Na Europa do final do século 20,
todas as revoluções foram "telerrevoluções". Imprensa livre e produção cultural independente de "orientações" superiores sempre causaram, no mínimo,
desconforto aos governantes. Contribuíram até para derrubar muitos deles,
quando desonraram seus compromissos constitucionais. Se ocorresse o contrário, se a mídia e as manifestações culturais proporcionassem conforto aos
governantes, não estariam cumprindo
seu papel, seja por submissão voluntária, seja por imposição de regimes ou de
dirigentes autoritários.
Defender as liberdades, os valores da
democracia e os princípios republicanos é mais fácil quando não se tem poder para recortá-los, subvertê-los ou
cerceá-los. O duro teste, a hora da verdade, porém, chega junto com o poder.
É o exercício diário do poder, com todas
as suas agruras, que separa o governante genuinamente comprometido com a
democracia daquele que apenas se valeu das liberdades e do regime democrático para chegar lá. E que, uma vez lá,
cede à tentação de recolher a escada que
permitiu sua ascensão, para assim impedir que outros a usem e se perpetuar
no poder.
Também é mais fácil escolher um lado
e travar o bom combate quando se está
diante de um regime autoritário ou de
uma ditadura mais ou menos escancarada. Difícil é identificar o lado correto e
resistir quando o impulso liberticida
não se mostra por inteiro e à luz do dia,
quando ataca sorrateiro, dissimulado,
quase invisível e, não raro, usando a
máscara do idealismo. Nesse caso, é conhecido o alerta de Bertrand Russell,
para quem "muitas vezes o idealismo
não é outra coisa senão um disfarce para o ódio ou para a sede de poder".
A história está repleta de exemplos.
Surtos autoritários não contidos a tempo, como o macarthismo, por exemplo,
podem prosperar até nas mais sólidas
democracias. Imagine o potencial de
dano em democracias que nem sequer
atingiram ainda a maioridade...
Para capturar corações e mentes, mais vale controlar a mídia e a produção cultural do que dispor da força bruta
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Intimidar o Judiciário, desidratar o
Ministério Público, impor contrapartidas "sociais" e dirigismo à produção
cultural, criar autarquias dedicadas a vigiar e punir os produtores de informações, expulsar jornalistas, insurgir-se
contra a exposição do contraditório na
mídia, aparelhar o Estado, silenciar os
servidores públicos, recortar direitos e
garantias individuais em nome de um
suposto interesse coletivo, quebrar sigilos assegurados pela Constituição -este é o longo e indigesto cardápio apresentado pelo governo do PT à sociedade. Esse cardápio e cada um dos seus
pratos devem ser rejeitados com veemência.
Orientar, disciplinar, fiscalizar, punir
não parecem verbos próprios para regular a relação de um Estado democrático com a mídia e a cultura. Prestam-se
mais a uma escalada autoritária, pela
qual o governante de turno pode tentar
impor a sua visão de mundo como sendo a linha justa na busca do bem comum. "En este mundo traidor", dizia o
poeta, "nada es verdad ni es mentira.
Todo depende del color del cristal con
que se mira." Escolher a cor do cristal e
pretender que toda a sociedade veja a
realidade através dela expressa inequívoca intolerância à diversidade de pensamentos e opiniões, à crítica e à contestação. Para quem está na vida pública, é
renegar a obrigação de se explicar e de
prestar contas à sociedade por seus atos
e omissões.
As tentativas recorrentes do petismo
oficial de ditar novos catecismos que
proclamam verdades, disciplinam as
manifestações culturais e a difusão de
informações e silenciam vozes incômodas são inspiradas também por um certo sentido de "revelação" quase teológico. O efeito, contudo, pode ser o contrário do que se alega buscar. "Não é possível libertar nenhuma classe começando,
em primeiro lugar, por negar-lhe alguma coisa", lembrou Heinrich Böll, Prêmio Nobel de Literatura, insurgindo-se
contra o maniqueísmo nas artes.
Aqueles que exercem o poder, principalmente quando chegam lá graças à alternância que só a democracia assegura,
deveriam refletir sobre as lições da história recente. Ela registra a surpreendente transição pacífica verificada em
todo o Leste Europeu, com a única exceção da Romênia, no final dos anos 80.
Em uma frase, Adam Michnik, um dos
líderes do Solidariedade, explicou a maturidade política demonstrada pelos
novos donos do poder: "A história tinha
lhes ensinado que aqueles que começam atacando bastilhas acabam construindo as suas próprias". Para uso
alheio, desde logo.
José Serra, 62, economista, é o candidato do
PSDB à Prefeitura de São Paulo. Foi senador pelo
PSDB-SP (1995-2002) e ministro do Planejamento e da Saúde (governo Fernando Henrique).
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