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ANTÔNIO ERMÍRIO DE MORAES
O banquete
da fome
Quando o telefone tocou, eu estava no carro do Matias, indo para
um restaurante que, na opinião dele, é
o melhor de São Paulo em matéria de
peixes e crustáceos.
O "alô" ouvido no "viva-voz" do
carro já denunciou quem chamava. O
Matias e eu falamos ao mesmo tempo:
"É a Joaninha!", velha companheira
de ginásio, de quem nunca nos afastamos -ela tem uma língua ferina...-,
e que foi logo perguntando:
"Quem está com você, Matias?" Ao
saber que era eu, deu uma gargalhada,
acrescentando: "O assunto é para os
dois. Para você, que é fazendeiro, e para o Antônio, que é industrial -ambos doentiamente crentes no futuro
deste país."
E continuou: "Estou lendo no jornal
que a Reunião Mundial da Fome, realizada em Roma na semana passada,
começou com um almoço de arromba, com 170 garçons que serviram aos
3.000 delegados salmão, "foie gras"
com kiwi, lagosta ao vinagrete, risoto
com laranja, carne de ganso recheada
com azeitonas e crepes de cogumelos.
Como sobremesa, compotas de frutas
de variadas origens. O que vocês
acham desse cardápio para começar
uma discussão séria sobre a fome no
mundo?".
O Matias estava a par do assunto -e
muito revoltado. Eu entrei na fossa na
hora. Afinal, com um desatino desse
calibre, a conferência só poderia fracassar, como, de fato, fracassou.
Depois de uma semana de discussão
a respeito da expressão-chave do documento final, os glutões de Roma decidiram excluir a expressão "direito à
comida", substituindo-a por "criar
condições para que o direito à comida
seja garantido".
Foi uma grande conclusão...! Se eles
continuarem comendo do jeito que
comem em aberturas de eventos, teremos de esperar décadas até que cheguem as "condições" para garantir
aquele direito.
O diretor-geral da FAO, o senegalês
Jacques Diouf, ao ver tanta falta de
bom senso e total ausência de consenso, foi curto e grosso: "Não há solidariedade entre ricos e pobres. Cada país
terá de resolver por conta própria o
seu problema de fome". Foi o "gran finale" de uma melancólica reunião
-só superado pelo "brilho" do fausto
almoço de abertura.
Para nós, do Brasil, acrescentei, isso
não é novidade nem desesperador. Já
produzimos 100 milhões de toneladas
de grãos e ultrapassaremos os 110 milhões em 2003.
Nesse ponto, a Joaninha questionou
o Matias: "Se as safras são tão abundantes e se a disponibilidade de alimentos per capita entre nós é 60%
maior do que a média do mundo, por
que se fala em fome no Brasil?".
O Matias, que parecia tão nervoso
quanto faminto, disse-nos que "o problema é distributivo" -bonito!-,
prometendo explicar a sua teoria em
um encontro pessoal.
A conversa estragou nossos planos.
Desistimos da "trattoria" e fomos comer uma pizza... -a única maneira
que nos restou para compensar a esbórnia de Roma.
Antônio Ermírio de Moraes escreve aos domingos nesta coluna.
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