São Paulo, domingo, 18 de abril de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Ministério Público, ética e oportunismo

LUIZ ANTONIO GUIMARÃES MARREY

A revelação de uma nova fita gravada, a qual reproduz conversa entre um procurador da República e um empresário apontado como bicheiro, tendo como objeto o pedido de propina feito por um subchefe do gabinete civil da Presidência da República, gerou imediatos efeitos no cenário político e jurídico brasileiro.
O fato de a conversa ter ocorrido de madrugada, às escondidas e considerando o teor das palavras ditas pelo membro do Ministério Público provocou violenta reação por parte de lideranças do governo, que passaram a afirmar a existência de uma conspiração que desmereceria de maneira total os fatos anteriormente noticiados referentes ao "Waldogate". Além disso, embora tenha havido declarações públicas por parte do governo federal e de suas lideranças mais responsáveis, no sentido de concentrar as críticas na conduta de alguns procuradores e não generalizá-las para a instituição do Ministério Público, o fato é que, informalmente e nos corredores do Congresso, ouviam-se ameaças de represálias à instituição e suas atribuições, inclusive com acenos à "Lei da Mordaça".
Tudo isso nos obriga a algumas reflexões.
O Ministério Público é fiscal da constitucionalidade e da legalidade dos atos da administração em geral. Exerce, portanto, uma atividade que deve primar pela ética e que deve ser realizada com absoluto respeito aos seus princípios, sob pena de invalidar juridicamente seu trabalho e de perder a sua autoridade moral. Independentemente do que for esclarecido na apuração prontamente instaurada pelo procurador-geral da República, a primeira impressão que ficou foi negativa, sendo difícil uma explicação totalmente convincente para ouvir alguém de madrugada, escondendo tal fato do chefe da instituição e ainda pelas frases referentes à queda de ministros e do governo. A conduta adotada causou claro dano institucional ao Ministério Público e atiçou os apetites de todos quantos querem vê-lo diminuído ou amesquinhado na sua capacidade de trabalho e investigação.
É preciso deixar claro que condutas profissionais que firam a ética devem ser repelidas com vigor, partam de onde partirem, e são absoluta exceção no cotidiano da instituição. A ética da convicção não pode ser substituída pela ética da responsabilidade, em que os fins justificam os meios, mesmo que seja para a apuração da conduta de alguém tido como um grande vilão.


O ideal de parcelas importantes do poder político e econômico é um Ministério Público dócil para os poderosos


Presta um grande desserviço à causa republicana e democrática quem possa deixar dúvidas quanto a seus métodos e sua motivação.
É preciso lembrar que há aproximadamente meio século, César Salgado, uma das maiores figuras do Ministério Público brasileiro, no seu "Decálogo do Promotor de Justiça", já manifestava preocupação com o tema da ética, recomendando aos membros do Ministério Público que não maculassem suas ações com emprego de meios eticamente condenáveis. Por outro lado, o episódio referido transformou-se em ótimo pretexto para aqueles que não querem ser incomodados pelo Ministério Público. A chamada "Lei da Mordaça" não está na agenda do governo -anuncia-se-, mas em nenhum momento se garante que o governo seja contra tal idéia.
O ideal de parcelas importantes do poder político e econômico é um Ministério Público dócil para os poderosos e feroz com os humildes.
Quando se trata de investigação criminal realizada pelo Ministério Público, alguns mal conseguem esconder que preferem eventuais mazelas dos porões de um inquérito policial a terem de deparar com uma investigação feita por promotores de Justiça. Outros têm grande dificuldade de conviver com mecanismos constitucionais de fiscalização e, na sua arrogância, acham que, umas vez eleitos, não precisam prestar contas da regularidade de suas administrações, como se o poder se legitimasse apenas pela investidura, e não também pelo exercício. Muitos sonham com a irresponsabilidade pelos seus atos, típica das monarquias absolutistas.
O país precisa que suas instituições republicanas funcionem e cumpram de forma efetiva o seu papel. Querer transformar um episódio isolado num grande fato político que ameace a integridade da instituição do Ministério Público é agir com inequívoco oportunismo e produzir uma cortina de fumaça destinada a impedir que se veja a luz que limpa e desinfeta os ambientes patológicos.

Luiz Antonio Guimarães Marrey, 48, é procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo. Foi procurador-geral de Justiça por três mandatos (1996-98, 1998-2000 e 2002-04) e presidente do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça (1997).


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