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TENDÊNCIAS/DEBATES
Gandhi e a economia do hidrogênio
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE
Com frequência um besteirol começa como utopia. E utopias vicejam em situações de frustração aguda.
Assim, o complexo de condições adversas no que diz respeito à disponibilidade de energia em futuro não distante,
associado à evidente degradação do
meio ambiente provocada pelo consumo abusivo de combustíveis fósseis,
constitui o cenário propício à eclosão de
utopias e seitas no setor de energia.
É sob esse signo que surge com potência inesperada a "onda do hidrogênio".
Aliás, deveríamos dizer "renasce", pois
até no Brasil, na Unicamp para ser preciso, experiências com armazenamento
de hidrogênio em metais e com células
combustíveis já eram realizadas havia
pelo menos um quarto de século. Todavia esse novo movimento surge sob a
égide de uma seita de estável convicção,
o distributivismo.
O mais eminente e consequente representante desse princípio foi o Mahatma Gandhi, que o ilustrou com uma
produção caseira do tecido de suas roupas -que, felizmente, eram diminutas.
O exemplo de Gandhi deve ser tomado
como um saudável conselho para nossa
saúde mental e corporal, mas não como
uma política tecnológica e industrial.
Como toda religião vigorosa, o princípio fundamentalista do distributivismo
na produção renasceu com vigor há
exatamente 30 anos, graças ao brilhante
livro de E. E. Schumacher "O negócio é
ser pequeno" ("Small is Beautifull").
Nessa mesma esteira surgiu, dez anos
depois, a profecia de Alvin Toefler, "A
Terceira Onda", hoje bastante desacreditada, e outras vieram. O que podemos
concluir dessas persistentes manifestações do que chamaremos de impulso
distributivista primevo é que ocorrem
como reação aos excessos da especialização e consequente concentração de
atividades produtivas. E, como tal, são
certamente bem-vindas, mas não podem se tornar fundamento de uma civilização urbanizada em que a eficiência
se torna o princípio da sobrevivência.
No entanto não podemos deixar de
reconhecer que esquemas distributivistas variados, líricas tecnologias apropriadas e outras ilusões são humanizadores e inofensivos. É por esse ângulo
benevolente que devemos, por exemplo, avaliar a criação de uma Secretaria
de Ciência e Tecnologia para Inclusão
Social e Tecnológica Apropriada no
MCT, contanto que não venha ela a absorver parte significativa do orçamento.
Todavia também é com frequência
que oportunistas e charlatões se aproveitam dessa inclinação açucarada do
espírito empreendedor. É nesta vertente
que surgem os apóstolos da chamada
economia do hidrogênio. O mito prevê
a substituição do petróleo e da eletricidade na economia mundial pelo hidrogênio. E o profeta maior dessa seita nascente é o economista americano Jeremy
Rifkin ("A Economia do Hidrogênio").
Como sempre ocorre nessas ocasiões,
a argumentação se vale de uma percepção superficial dos problemas envolvidos e de informações deliberadamente
distorcidas. O engodo começa com o
subtítulo do livro, a saber, "A criação de
uma nova fonte de energia e a redistribuição do poder na Terra". Em várias
oportunidades declama o autor que o
hidrogênio, além do mais, é o "elemento mais abundante do universo". Acontece que o elemento hidrogênio (H) não
é a molécula de hidrogênio, H2. Esta última é combustível, mas só se encontra
em quantidades ínfimas. O elemento H,
este sim é abundante, mas está ligado
quase sempre a outros átomos, formando moléculas ou sólidos. O hidrogênio
molecular, H2, que é fonte de energia, é
praticamente inexistente, e o hidrogênio elementar combinado a outros átomos, abundante, ou já está em outros
combustíveis ou não é fonte de energia.
O hidrogênio terá uma participação na economia da energia, mas não será a panacéia que certos oportunistas proclamam
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Rifkin, embora nos alerte brevemente
(no cap. 8 de seu livro) de que é preciso
gerar o hidrogênio molecular, em suas
argumentações mais gerais parece esquecer esse fato fundamental. A única
vantagem que o hidrogênio poderá vir a
ter sobre a eletricidade é um menor custo de armazenamento. Essa possibilidade existe porque, aparentemente, nesse
setor ainda há um certo espaço para desenvolvimento e redução de custos em
comparação com o que ocorre com a
eletricidade. O hidrogênio se torna
atraente, então, para uso em cidades de
grande densidade populacional, para
transporte em que a saúde deve ser privilegiada a qualquer custo e em sistemas
em atividades estratégicas nas quais interrupções breves podem ser catastróficas. Todavia, com a atual pletora de tecnologias utilizadas, a poluição resultante não é reduzida, mas apenas transferida para locais menos frequentados. E
essas aplicações são muito limitadas.
Rifkin sugere um esquema em que
miniusinas em casas, locais de trabalhos
etc. produziriam, por efeito fotovoltaico, eletricidade que serviria para eletrólise da água, com o que se teria o hidrogênio combustível. É claro que esse sistema só começaria a ser interessante
quando o custo dessa parafernália, somado ao do armazenamento do hidrogênio, se tornasse inferior ao de baterias
elétricas para carga de energia equivalente, o que ainda é um sonho.
Mas nada ilustra melhor a precipitação do profeta Rifkin do que sua proposta para evitar outro apagão no Brasil. Diz ele em entrevista à Folha (16/6/
03): "Se vocês tivessem conversores para
transformar o excedente de energia em
hidrogênio, não teriam tido problema".
Um cálculo simples mostra que, se alinhássemos reservatórios cúbicos para
hidrogênio com a melhor tecnologia
existente, de um metro cúbico cada um,
com capacidade total para suprir eletricidade durante um ano de seca no Brasil, seria necessário ir à lua e voltar com
essa fileira de reservatórios. Ampliar as
hidroelétricas, de acordo com o planejamento que o governo FHC não obedeceu, seria infinitamente mais barato.
O hidrogênio terá, por certo, uma participação na economia da energia do futuro, mas não será a panacéia que certos
oportunistas proclamam.
Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 71, físico,
professor emérito da Unicamp e membro do
Conselho Editorial da Folha.
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