São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES O estadista brasileiro do século 20
LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA
Em 1930 o Brasil era um país agrícola; em 1960, um país industrial. Em 1930 o capitalismo era ainda essencialmente mercantil e, não obstante o surgimento de uma elite cafeeira moderna no oeste paulista, a idéia de aumento da produtividade engatinhava; em 1960, o capitalismo brasileiro já era industrial, liderado por uma nova classe empresarial originária da imigração, que investia e incorporava progresso técnico a todo vapor. Em 1930 a classe média era pequena, girando em torno de um Estado patrimonial; em 1960 já surgira uma grande classe média privada, enquanto a tecnoburocracia estatal crescera e se modernizara. Em 1930 o Estado patrimonial era apenas um instrumento de ordem e da unidade nacional; em 1960, transformara-se no grande Estado desenvolvimentista que permitia à economia brasileira crescer como nunca antes crescera. Essa extraordinária transformação teve em Getúlio Vargas seu líder. Um líder moderno, embora originário da oligarquia de senhores de terra; um líder popular, mas consciente de pertencer à elite; um líder tão carismático quanto racional. Enfim, um político que trazia dentro de si todas as contradições da própria sociedade brasileira, mas era capaz de conviver com elas e as resolver tendo em vista o interesse nacional. Vargas não era exatamente um democrata, e certamente não era um liberal. Ele provinha das elites militares e intelectuais nacionalistas que se formaram no Brasil nos anos 20, tendo como figuras intelectuais chave Anísio Teixeira e Alberto Torres. Mas, como muitos de seus contemporâneos, percebeu que o Brasil amadurecia para a democracia e foi capaz de jogar o jogo democrático. O que ele soube, porém, melhor do que ninguém foi jogar o jogo nacional. A industrialização brasileira derivou em grande parte da própria dinâmica da economia brasileira, mas foi também o resultado de uma política deliberada de apoio à indústria nacional, que se deve a Vargas e à grande equipe de técnicos do Estado que ele reuniu em sua volta. Getúlio Vargas foi um líder populista, porque foi capaz de estabelecer uma relação direta com o povo, especificamente com os trabalhadores urbanos. Nessa qualidade ele logrou fazê-los participar do processo político, em conjunto com os empresários, os políticos e técnicos do governo. Seu pacto político, portanto, era popular, nacional e desenvolvimentista. Por isso, muitas vezes ele é comparado com Perón, mas há uma enorme diferença entre os dois. Getúlio Vargas jamais foi um populista econômico e manteve sempre a austeridade fiscal, enquanto Perón não tinha idéia dos limites fiscais. O político só se transforma em estadista se ele é capaz de aliar a visão dos grandes problemas nacionais à coragem necessária para enfrentá-los. Se ele tem a ambição do poder e a capacidade de o alcançar, mas sabe que esse poder só faz sentido se for acompanhado do espírito republicano. Getúlio foi o grande estadista brasileiro do século passado porque foi capaz de aliar essas qualidades e transformar o Brasil em um grande país. Depois da era Vargas o Brasil continuou a se desenvolver, entre 1964 e 1980, mas sob um regime militar autoritário, do qual os trabalhadores foram excluídos, e os intelectuais de esquerda se colocaram em conflito com os empresários. A partir de 1980 esse regime entrou em crise econômica, da qual não saiu até hoje. Em 1985 alcançamos a democracia, mas a formação e a consolidação do Estado nacional brasileiro se interromperam, na medida em que o nacional-desenvolvimentismo de Vargas era atacado. Atacado pela ideologia neoliberal, que pretendeu substituir o Estado pelo mercado, em vez de compreender que um mercado forte só se logra com um Estado igualmente forte. Atacado pelo globalismo, que decretou o fim do Estado nacional, ou seja, da própria nação. Essas duas ideologias, porém, pouco mais ofereceram ao país do que o desemprego, a pobreza e a interrupção da revolução nacional. Hoje, a idéia do desenvolvimento nacional está sendo retomada. Apoiada no avanço da democracia brasileira, existe atualmente uma crescente indignação contra os 25 anos de quase-estagnação. E, nesse novo quadro, a figura de Getúlio se agiganta. Surge a oportunidade para um novo desenvolvimentismo. Novo desenvolvimentismo que terá de contar mais com o mercado, porque o Brasil possui hoje uma economia mais complexa do que aquela que Getúlio conheceu. Mas um desenvolvimentismo que voltará a tornar claro que o desenvolvimento é sempre o resultado de uma estratégia nacional e que, nessa estratégia, os empresários e os trabalhadores de alguma forma associados são os agentes desse desenvolvimento, e o Estado é o instrumento da ação coletiva que viabiliza essa estratégia. Luiz Carlos Bresser-Pereira, 70, é professor de economia da FGV-SP. Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo FHC), além de ministro da Fazenda (governo Sarney). Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Fábio Konder Comparato: Dois escândalos e uma proposta Índice |
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