São Paulo, domingo, 26 de setembro de 2004 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES ISAIAS RAW 20 anos de biotecnologia
Governo e sociedade esperam, do
avanço das pesquisas em biologia
molecular e suas aplicações, a solução
não apenas dos problemas de saúde e da
produção de alimentos, mas o novo milagre econômico que impulsionará o
Brasil para chegar ao Primeiro Mundo.
Acostumamo-nos a ler nos jornais os
espetaculares avanços da biotecnologia,
anunciados pelo otimismo dos nossos
pesquisadores. Em geral confundem
(boa) pesquisa com desenvolvimento
tecnológico.
O Instituto Butantan é outra exceção. Quando cheguei ao instituto, em 1984, a produção dos essenciais soros antipeçonhentos, descartadas as preparações inativas ou contaminadas, atendia só a 10% da demanda nacional. As epopéias, com participação do Butantan, da eliminação da peste (com soro) e da varíola (com uma vacina descoberta há 200 anos), deram lugar a vacinas que não eram consideradas apropriadas para uso humano. A solução foi criar um centro de biotecnologia, preocupado em realmente desenvolver tecnologia de produção, traduzir essa tecnologia de verdade em novas plantas de produção de soros e vacinas e atender à demanda do país por meio do Ministério da Saúde. Decorridos 20 anos, logramos produzir, em 2003, 200 milhões de doses de vacina, que, administradas a todos as crianças (difteria, tétano, coqueluche, hepatite B), jovens (hepatite B) e idosos (difteria, tétano), mostraram-se seguras e eficazes, eliminando essas doenças, criando competência tecnológica e duas centenas de empregos. Para caminhar mais depressa, fomos buscar no exterior a tecnologia da vacina contra influenza. Nesse processo mostramos competência, negociando um preço que permitiu economizar a cada ano US$ 30 milhões e vacinar pelo quarto ano 95% dos maiores de 60 anos, reduzindo a incidência de pneumonia que fazia encher os prontos-socorros a cada inverno. Associando governo federal e Estadual, a fábrica da vacina começa a ser construída, e em 2006 produziremos integralmente nossa vacina, tornando o Brasil independente da importação -que poderá faltar se houver, como se prevê, uma pandemia. O Butantan recuperou seu prestígio e é considerado um dos mais importantes centros de biotecnologia. Criou sua própria vacina contra a raiva em células Vero, inventou uma vacina contra coqueluche muito mais segura, está introduzindo a vacina da maternidade (tuberculose, hepatite B). Em 2005 iniciará a produção da vacina pentavalente (DTP, hepatite B, hemophilos B), que no Brasil usará o Hemophilus da Fiocruz, e da vacina tríplice da maternidade (tuberculose, coqueluche, hepatite B). Agora são pesquisadores de outros países que, tendo desenvolvido, no laboratório, uma nova vacina, procuram-nos para desenvolver a tecnologia de produção. Estamos concluindo acordos para desenvolver e produzir no Butantan as vacinas contra rotavírus -que em todos os invernos é causa da ocupação de mais da metade das camas dos prontos-socorros pediátricos-, da vacina contra o papiloma do colo do útero -que induz o aparecimento do câncer na mulher-, da vacina contra a leishmaniose, contra a pneumonia celular e o amarelão. Não basta ter uma vacina, se seu preço é superior à capacidade econômica de sua implementação (o Terceiro Mundo tem um orçamento de menos de US$ 0,30 por criança a ser vacinada). O Butantan aparece, nos fóruns internacionais de saúde, como um centro que desenvolve vacinas eficazes a preços que governos e instituições internacionais podem pagar. Em 2005 todas as maternidades públicas receberão, do Ministério da Saúde, surfactante pulmonar a preços reduzidos, evitando que 40 mil bebês prematuros morram sufocados. Enquanto muito se discutem os "vampiros" que retardaram a produção de hemoderivados no Brasil, o Butantan iniciará, em janeiro, a construção da mais moderna fábrica de processamento de plasma, a primeira no mundo a usar processos de cromatografia, que permitem produzir frações livres de quaisquer vírus duplicando o rendimento dos fatores anti-hemofílicos. Novos planos incluem não apenas novas vacinas, mas biofármacos de custo tão alto que não podem ser distribuídos a toda a população que deles necessita -insulina para diabéticos, interferon para pacientes com hepatites, glucocerebrosidade para poucos pacientes, que custam US$ 100 mil cada um. A biotecnologia de verdade é um produto à disposição da saúde pública. Vinte doutores associados e outros tantos pesquisadores que dirigem a produção de soros e vacinas fizeram esse milagre científico, técnico e administrativo, demonstrando que um organismo público pode ser eficaz. Valeu a pena voltar do exílio e trocar a pesquisa básica pela pesquisa orientada à saúde pública! Isaias Raw, 77, professor emérito da Faculdade de Medicina da USP, é presidente da Fundação Butantan. Foi professor da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard, da City University de Nova York e do MIT (todos nos EUA). Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Paulo Antônio Skaf: Produzir, crescer, empregar Próximo Texto: Painel do leitor Índice |
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