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São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

As premissas da concertação

TARSO GENRO

Os últimos debates que se travaram no CDES (Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social) tiveram larga repercussão na imprensa, pelo fato de incidirem sobre uma conjuntura saturada de expectativas negativas. Esse órgão de assessoramento do presidente saiu um pouco daquele "perfil médio" de aparição pública, que é a situação ideal para uma estrutura de negociação política de caráter estratégico.
Como o nosso país não tem tradição de diálogo e debate político "entre classes", mas operou seus processos sociais ou a partir principalmente da cooptação, como no processo de modernização originário do varguismo, ou a partir da eliminação violenta das forças adversárias, como no regime autoritário, o trabalho do conselho tem suscitado dúvidas.
A mais recorrente é se ele pode ou deve se manifestar sobre questões de "curto prazo", como medidas governamentais destinadas a impulsionar o crescimento. Poder, obviamente pode, mas se deve ou não é uma outra questão -ou seja, é a verdadeira questão política a ser debatida. Entendo, como secretário-executivo do conselho, que pode e deve. Desde que as manifestações sejam formuladas como "propostas", e não induzidas como se tivessem um caráter normativo para o governo.
Seria muito estranho, por exemplo, se toda a sociedade, inclusive "via" colunas jornalísticas bem (ou mal) autorizadas, estivesse discutindo taxa de juros e o conselho, que tem no seu interior todas as centrais sindicais, uma grande parte do PIB nacional, ONGs de responsabilidade social enorme e intelectuais respeitados, não dissesse nada sobre isso. Seria uma sonegação de informação ao presidente.
É óbvio que as questões de curto prazo não podem ser o objetivo central do conselho -em termos de prioridade política, o CDES é um órgão do governo e a sua secretaria é uma secretaria política- nem devem obscurecer aquele que é o seu objetivo central: o diálogo entre classes, setores, corporações, entidades de representação ampla da sociedade civil, na busca da concertação social. Concertação que significa, em primeiro lugar, identificar os temas estruturantes de um novo contrato social e, ato contínuo, buscar posições pactuadas, que sejam amplamente majoritárias e hegemônicas na sociedade. Tudo para transitarmos, com o menor custo político e social possível, para uma sociedade com mais igualdade, inclusiva, com altas taxas de crescimento e radicalmente democrática.
As premissas para a concertação estão em andamento: primeiro, provou-se que os setores sociais aparentemente mais divergentes, representados no conselho, querem e sabem dialogar; segundo, o encaminhamento das reformas, com uma boa dose de colaboração do CDES, está sendo bem-sucedido; e terceiro, a possibilidade de retomada do crescimento começa a aparecer como realidade. E, como ninguém negocia seriamente ou renuncia a algo quando todos estão perdendo, esta última condição é a premissa das premissas: que ela vença.


Se as tensões não forem incorporadas como método e regulação para um diálogo transformador, a democracia sucumbirá


O processo de reordenamento democrático das sociedades, na fragmentação social e na diluição do "público" na época "pós-moderna", não será feito sem tensões reguladas. Pelo simples fato de que as tensões, originárias das brutais exclusões e desigualdades geradas pelos "tatcherismos" centrais e periféricos, se acentuarão cada vez mais. Ora, se as tensões não forem incorporadas como método e regulação para um diálogo transformador, a democracia é que sucumbirá. O que poucos querem.
Não há nenhum exemplo histórico de transformação democrática duradoura, na sociedade moderna, que não tenha sido promovida por uma forte pressão da sociedade organizada. A força legitimadora das instituições na democracia representativa vem da sua capacidade de absorver e qualificar os conflitos que lhes são postos pela movimentação da sociedade civil.
O CDES transmitiu para o "mundo interno" do governo duas questões-chave para o seu futuro estratégico: ajudou a consolidar a idéia de transição para um outro modelo de desenvolvimento e ajudou a colocar em pauta a idéia da retomada do crescimento, opondo-se a uma certa visão "naturalista", que sustenta ser o crescimento apenas um acréscimo quantitativo da estabilidade macroeconômica.
Tudo isso o conselho fez com o governo, a partir do momento em que o conselho foi reconhecido como uma esfera pública que não é controlada pelo Estado e não é uma mera soma de interesses privados da sociedade civil. A experiência do CDES institui um espaço público não-estatal, no qual Estado e sociedade civil, ao mesmo tempo em que se confrontam, dialogam para produzir ações políticas concertadas. Sua finalidade estratégica é a concertação social, tomada esta como a construção democrática de uma nova ordem econômica e a tessitura de um novo pacto democrático que incorpore a totalidade da cidadania.


Tarso Genro, 56, advogado, é ministro da Secretaria Especial do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República. Foi prefeito de Porto Alegre (1993-96 e 2001-02).


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