São Paulo, domingo, 29 de agosto de 2004 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE Um réquiem para a ópera
Um pouco de estatística dará suporte à tese de que a ópera está
moribunda. Para que não me acusem
de tendencioso, apóio-me em um desses guias práticos sobre a ópera que andam por aí, "The Rough Guide (Opera)". Nele estão listados 142 compositores, de Monteverdi a Tan Dun, que se
dedicaram a esse gênero musical.
Antes, porém, de apresentarmos nossos argumentos, é bom lembrar que, embora concebida com a intenção de se tornar a restauração formal da tragédia grega em inícios do século 17, a ópera logo se instala como espetáculo efêmero ainda no Barroco. A noção de "repertório" nasceria e se restringiria, até praticamente o final do século 19, a Paris, onde essas obras eram propriedade exclusiva do teatro que as encomendara e que, fundamentalmente por questões de natureza econômica, seriam reprogramadas, temporada após temporada. Na Itália, onde cada cidade, por menor que fosse, tinha seu teatro, as óperas trasladavam de um local para outro com a mesma produção, o que reduzia custos. Com isso a ópera se tornava perecível. Milhares de compositores, na maioria hoje esquecidos, compunham suas óperas para a "próxima temporada", tornando essa uma prática absolutamente dinâmica. A ópera não era criada para a posteridade, mas para aquele momento. O público acorria às premières, partícipes fervorosos de uma liturgia esotérica; vestidos em gala, com as mais ricas jóias, o mais escandaloso exibicionismo, a mais esnobe afetação. No teatro se comportavam como crentes em um templo pentecostal. Estrebuchavam, vaiavam, louvavam com gritos histéricos de "bravo!", entravam em transe. E, no final, a obra, a produção, os desempenhos eram glorificados ou crucificados. Era uma orgia fajuta, mas viva, criativa. Hoje, todavia, a criatividade já não existe mais. No século 20 não nasceu nem um único compositor na Itália que pudesse se classificar como compositor de ópera, e no mundo, além do britânico Britten e do kitsch minimalista americano Philip Glass, nenhum mais poderia ser assim classificado. É claro que, com a proliferação e diversificação de profissionais da música, compositores incidentais de ópera ainda existem. Em um levantamento que realizei em 27 teatros líricos da Itália que encenaram 145 óperas na temporada de 2002, houve uma única première mundial, "Ellis Island", de Solima (quem é Solima?), e uma première italiana, a da ópera do ex-minimalista americano John Adams, "A morte de Klinghofer", um pasticho semikitsch. Foram 16 óperas de Verdi, 11 de Puccini, sete de Rossini, sete de Mozart, algumas de Tchaikowsky, Massenet, Scarlatti, Händel, Bellini, Monteverdi, Donizetti e até Delius, mais umas quatro ou cinco de autores desconhecidos. Do século 20, apenas poucas: uma de Britten, uma de Weill e uma de Dallapiccola. Para comparação, no século 19 cada teatro apresentava duas ou três (ou pelo menos uma) novas criações por temporada. Como se vê, até na Itália a ópera se tornou um exercício em arqueologia. E, se na Itália não há mais criação de óperas, onde haveria? Quais seriam as causas dessa morte súbita? Será porque o pragmatismo do século 20 é incompatível com a liturgia que acompanha o espetáculo da ópera? E será essa liturgia essencial? Ou talvez essa busca pela novidade que era o estímulo para novas criações seja, em nossos dias, satisfeita por tantas outras formas de espetáculo -esporte, cinema, televisão etc.? Ou será porque a difícil harmonização do apelo intelectual com o lado eminentemente popular necessária à constituição de um "mercado" para a ópera tenha se tornado inviável por meio das práticas de composição contemporâneas? Pois não são as poucas óperas modernas de sucesso (com a exceção de "Wozzeck", de Alban Berg) realizadas por compositores neoclássicos, quando não reacionários? Em conclusão, muitas hipóteses existem e não temos, por certo, uma resposta simples de por que está a ópera agonizando. Mas é certo que esse glorioso gênero de arte já merece um réquiem e que precisaremos, talvez, nos conformar com o que o passado tão generosamente nos legou. Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 72, físico, é professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Editorial da Folha. Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Geraldo Majella Agnelo: Em defesa da vida humana Próximo Texto: Painel do leitor Índice |
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