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CRÍTICA
A cidade imaginária
EUGÊNIO BUCCI
NÃO, A cidade imaginária não é uma cidade que não
existe. Não é aquela que alguém diz que traz na imaginação, a cidade ideal, a cidade dos sonhos, a cidade
projetada. Nada disso, por favor. A expressão cidade
imaginária, ao menos aqui neste artigo, vem designar a metrópole recoberta de elementos do imaginário: cores, formas,
figuras, automóveis, multidões se precipitando nas faixas de
pedestres na hora do rush, outdoors de imagens fixas e, agora,
outdoors que são televisores mastodônticos escancarados para a avenida que escorre. A televisão gigante brota da parede cega
do arranha-céu e põe suas personagens luminosas a se mexer. As
paredes urbanas adquirem luz
própria, movimento próprio, vida própria. Na avenida Paulista,
esses monitores do tamanho de
outdoors anunciam mensagens
exóticas. Anunciam candidatos a
deputado. Na avenida 23 de Maio
também. O candidato sorri para
o congestionamento. O candidato ainda balança a cabeça. O horário eleitoral irrompe feito pústula pelas brechas do concreto armado. Está preso ali. E, não obstante, ele se move.
O motorista avança para o cruzamento, o rádio ligado numa emissora que repete "o motorista não encontra dificuldade", e se distrai vendo o candidato com ar de moça na janela.
O motorista bate no carro da frente. O candidato tem um
olhar de pura confiança. O carro da frente finge que não é com
ele. A batida é de leve. Nenhum automóvel anda, embora a
voz no rádio garanta que "o trânsito flui bem". O trânsito,
aliás, trava. Só o candidato na empena do prédio é capaz de
caminhar com resoluta liberdade. A televisão e suas figuras
metafísicas cercam a cidade por todos os lados. Cercam a cidade porque cercam o olhar, cada lance fugidio do olhar. Cada objeto é um signo à caça de um par de olhos. Os restaurantes dispostos nas calçadas são os outdoors de si mesmos. Os
viadutos fazem publicidade do prefeito. Os edifícios e suas varandas empilhadas, e seus perfis espelhados, e seus heliportos
empinados. Os edifícios são anúncios do mercado imobiliário. O traçado das ruas, a moça alta na esquina que veste aquela grife. A imagem publicitária é total. Tapa cada fragmento de
horizonte. E se move.
Nas antigas animações de Walt Disney, era comum aquela
tirada de metalinguagem pela qual surgia na tela a mão do desenhista segurando um pincel e, desse pincel, respingavam
manchas de tinta na página em branco. Na sequência seguinte, as manchas se tornavam independentes e saíam saltitando pela
página. Eram bonequinhos, personagens de cartoon ou simplesmente formas abstratas. Que ganhavam vida. Pois é mais ou menos isso o que se passa com a cidade. Camadas sobre camadas de
tinta, de formatos, de pistas recapeadas, de placas com nomes de
rua, de lápides eternas e sempre
atualizadas nas vielas dos cemitérios, de imensos televisores nos
cruzamentos, como aquele da
Rebouças com a Brasil. A cidade é
uma sucessão de imagens que se
depositam umas sobre as outras,
como colônias de fungo. O imaginário dita o espaço. E se move.
Em "Blade Runner", imensas telas planas passeavam pelo
céu da noite, como se penduradas num dirigível, fazendo da
televisão uma entidade tão onipresente quanto a Lua. Mas
"Blade Runner" é de 1982 e, à luz fria dos nossos tempos, parece uma ficção anacrônica. A televisão onipresente é hoje um
dado corriqueiro. Ela está nas cozinhas, nos banheiros, nos
táxis, nas salas dos ministros e nas guaritas dos guardas-noturnos instaladas nas calçadas. Está nas farmácias, nos elevadores, nas margens das avenidas, nas moradias dos sem-teto
improvisadas sob os pontilhões. "Eppur si muove".
Mesmo assim, o sujeito contemporâneo olha para a frente e
pensa ver a realidade. Que coisa. Que coisa imaginária. Ele só
vê a cidade. Imaginária.
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