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CRÍTICA
Sotaques desterrados
EUGÊNIO BUCCI
QUEM FAZ papel de nordestino na Rede Globo é quase sempre um carioca. É triste dizer isso desse modo, é triste dizer isso quando se sabe dos méritos dos autores e diretores que conseguiram, nas novelas, falar
de regiões remotas desta nossa terra, falar dos "rincões" e dessa multiplicidade de tipos exóticos, caleidoscópicos e bem desenhadinhos que acabaram compondo a imagem de pluralidade dócil do Brasil integrado pela TV. É triste, vá lá, mas
também é fato: o novelão das oito firmou-se como um pêndulo incansável entre a cidade (o eixo Rio-São Paulo ou o eixo São
Paulo-Rio) e o campo (o interior
da Bahia mítica ou então da Bahia mística); o regionalismo,
quando chegou à TV, chegou ali
como pastiche de si mesmo. Na
TV, a prosódia nordestina nunca
passou de um "nordestinês" artificial e higienizado. Exceções à
parte, o Nordeste da TV está para
os nordestes reais assim como o
Zé Carioca do gibi está para Madame Satã. No horário nobre, o
"nordestinês" falsificado, cheio
de facilitações e de glamour,
substituiu os sotaques nordestinos autênticos e, no mesmo movimento, cassou aos nordestinos o direito de aparecer na TV.
Como cassou o direito à voz dos caipiras. Se há um som que
é banido do entretenimento chique no nosso país, esse som é
o "erre" dos caipiras. Aquele "erre" que deveria levar um til
em cima para ter a sua sonoridade representada adequadamente (mas o computador se recusa a grafar a letra "r" com
um til em cima; só o que se consegue digitar é o til ao lado do
"r"; o "r" do caipira é vítima de preconceitos até do teclado do
computador). A TV abomina o caipira. A propósito, a única
virrrtude daquele Kléberrr que ganhou o primeiro "Big Brotherrr" era o seu "r" que parecia um "i" mais fibroso ("fais
paite", ele vivia repetindo). Aquele Kléber redimiu a fala caipira, anistiou-a, reabilitou-a. Depois sumiu nesse "mundão
véio sem portêrrra". A fala do interiorzão de São Paulo, de
parte de Minas, do Paraná, essa fala é emudecida pela TV, é
uma minoria política, é perseguida como se fosse a própria
mula-sem-cabeça. Por todos. Os profissionais que recrutam
jovens executivos barram os caipiras. Nenhuma empresa
quer um sujeito que fale "porrrta" como seu CEO. Caipira,
eles imaginam, não sabe o que é CEO. As sogras de Ipanema
não querem saber de genros que puxem aquele "erre" que,
aos ouvidos delas, soa como um berrante expatriado. Falar
com aquele "erre" repuxado é falar como um aleijão fonético.
Correntemente, a TV quer eliminar o fatídico "errre" do rude e
doloroso idioma. Quer mantê-lo
apenas como curiosidade remota, como a moda de viola, o bicho-de-pé, o fumo-de-rolo, os
bailes de Ituverava.
Você nunca viu um apresentador de telejornal do meio-dia que,
em vez de emitir seu "boa tahrhde" aspiradamente acariocado,
espremesse dos lábios um "tarrrdê" acaipirado. Dificilmente verá.
Assim como dificilmente verá um
nordestino curtido e seco, genuíno, cerrando os olhos no papel de
galã. Você os verá como os vê, nos
programas humorísticos, passando por bobalhões que não percebem a malícia dos inimigos
que lhes cobiçam as mulheres, você os verá em funções subalternas, melancólicas, você os verá como vê os animais em extinção.
Não são apenas os negros que não têm vez na televisão brasileira. É o Brasil que não tem vez. É verdade que não temos
mais o Sérgio Cardoso pintando o rosto de negro para interpretar um escravo, mas temos aí uma porção de bonitões
bancando os "coronés" de araque, ou posando de jagunços
perfumados. Ah, sim, temos também os palhaços que fazem a
nação inteira gargalhar às custas dos caipiras. Na TV, o banimento dos sotaques corresponde ao banimento das diferenças no ideal de Brasil integrado. O Brasil que idolatramos é um Brasil de mentira.
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