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CRÍTICA
A noite de núpcias
EUGÊNIO BUCCI
EM MUITA gente causou estranheza a longuíssima
participação do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da
Silva, no "Jornal Nacional" de segunda-feira. Ele permaneceu no estúdio, ao lado de William Bonner, durante toda a duração do noticiário. Ao longo da entrevista, recebeu homenagens em forma de videoclipe, com tomadas em
câmera lenta de comícios imensos, oceânicos, derramados.
Bandeiras vermelhas tremulavam em êxtase no vídeo, num
fervor rubro-proletário de deixar no chinelo o mais ensandecido culto à personalidade do
mais apologético realismo socialista -e o mais emocional dos
arroubos emocionados de Duda
Mendonça. Para o bem ou para o
mal, foi de chorar.
Lula falou livremente. Contou
episódios da corrida eleitoral,
sempre bem-humorado, quase
brincalhão. Lula está de bem com
a vida e com Fátima Bernardes.
Na viagem que o leva ao poder, o
"Jornal Nacional" é escala obrigatória, como se sabe. Para Lula,
foi uma escala prazerosa. Foi
uma noite de núpcias.
A estranheza que essa lua-de-mel provoca em vários telespectadores é explicável. Muitos se
perguntam: "Ora, mas não foi contra a Globo que Lula tomou
o poder?". Bem, a pergunta é por demais polarizada e não deixa ver a ambiguidade da situação. Lula está chegando ao poder contra alguns discursos e contra alguns preconceitos que
antes se achavam refestelados na tela da Globo, é verdade,
mas não contra a Globo em termos absolutos. Passada a eleição, muitos desses preconceitos e desses discursos tendem a
silenciar. Vão sair de fininho. Ao mesmo tempo, certos signos, como uma bandeira vermelha, que antes tinham uma
carga negativa, passam a ser identificadas com virtudes heróicas: determinação, coragem, sede de justiça. Agora são "do
bem". A simbologia política do Brasil ganha nova iconografia.
As velhas imagens se vão, como os anéis que abandonam os
dedos. A Globo, como os dedos que ficam, também fica.
Não são mudanças abruptas. Elas já se anunciavam durante
a cobertura da campanha eleitoral. Agora, cristalizam-se no
horário nobre. Lula, que em 1989 era um índice de perturbação, de desordem e de radicalismo, adquire o status de mito
definitivo. Em plena tela da Globo. Portanto, não é bem "contra a Globo que ele tomou o poder", mas dentro da Globo. Lula, enfim, não é mais aquele de 1989. Claro que não. A Globo
também não é. Pronto. Em 2002, ambos se encontram em
lua-de-mel.
Insisto mais um pouco na ambiguidade da noite nupcial. De
um ponto de vista mais cético, ela
pode indicar a simples absorção
do líder-operário-que-virou-presidente pela linguagem melodramática da TV, que sempre concorreu para despolitizar o país.
Por aí, a edulcoração da figura do
presidente serviria para neutralizar o que há nele de contestador,
de grevista, desvinculando-o de
sua origem. Mas, como falamos
de uma ambiguidade, a noite de
núpcias também pode indicar o
oposto: um aprimoramento do
telejornalismo global. Nascido
sob o autoritarismo militar, esse telejornalismo era apenas
um melodrama noticioso destinado a produzir o imaginário
pacificador para os brasileiros excluídos do poder e da riqueza. Agora, talvez ele esteja mais aberto às contradições reais
do cotidiano desses mesmos brasileiros, contradições que
não costumavam aparecer na TV. Não importa se esse aprimoramento é motivado por um instinto bajulatório da emissora, pelo seu governismo compulsivo e reincidente. O fato é
que, ainda que de modo ambíguo, ele acontece.
Aí é que surge a pergunta que interessa: será que o melodrama adulador reduzirá o presidente a uma atração inofensiva
do horário nobre? Ou será que o movimento que levou Lula
ao poder imporá mudanças mais profundas na estrutura do
melodrama noticioso e, enfim, na própria televisão brasileira?
Para saber a resposta, só vendo os próximos capítulos.
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