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CRÍTICA
Xingou por quê?
MARCELO RUBENS PAIVA
HÁ POUCOS dias, testemunhei uma cena que me teletransportou para um passado recente. Um sujeito
aparentemente bêbado xingava uma van da Rede
Globo. O veículo estacionado não impedia a sua
passagem. Como um totem, mantinha-se sólido e imponente,
com a sua cor desigual, enfeitado pelo logotipo "globo-olho".
O que o pedestre destratava? O silêncio da emissora durante
a luta pela Anistia e liberdades democráticas, quando a censura já havia sido levantada? A sua teimosia em desprezar o início do empolgante movimento das Diretas Já? A falta de pluralidade na cobertura da disputa
entre Collor e Lula? A demora
para abraçar a causa do impeachment do primeiro?
Já houve um tempo difícil para
o jornalismo da Globo. Eventualmente, seus profissionais eram
xingados, seus carros, depredados. Em muitos casos, os repórteres faziam reportagens sem o
logo da empresa em seus microfones. E o que eles diziam não era
confiável. A emissora, que empregou tantos perseguidos pelo
regime militar, que nunca aceitou uma lista negra, não alimentou uma caça às bruxas em que
comunistas de carteirinha, como
Dias Gomes, assinavam a sua teledramaturgia, viveu uma dualidade provocando ódio e suspeita em muitos.
Seguindo uma lógica aristotélica, pode-se afirmar que a
Globo não era uma emissora de direita convicta, afinada
completamente com a ideologia de um regime autoritário.
Era bem pior: ela apenas se acovardava.
Conseguiu em poucos anos de vida transformar a TV no
eletrodoméstico mais atraente de uma casa brasileira. Cláudia
Abreu, no filme "Ed Mort", representando uma apresentadora de programa infantil, canta para as câmeras: "Coma em
frente à TV, durma em frente à TV, brinque em frente à TV,
viva em frente da TV!". O Brasil viveu em frente à Globo como
nunca havia feito antes, foi fiel e, depois, sentiu-se traído.
Hoje, seu jornalismo procura erguer um alto grau de credibilidade. Nas últimas eleições, foi surpreendentemente isenta,
confrontando seu histórico. É evidente que num Estado em
que a concessão de uma emissora de TV é revista periodicamente, ou em que há eventuais isenções fiscais camaradas para a importação de equipamentos, ou em que o grosso da verba publicitária está na mão do homem público, a independência de informações sempre estará contaminada por uma
promíscua relação.
"Teleleilão" é o gênero que
mais cresce na TV brasileira . São
três os programas, "TV Shopping Brasil", "Medalhão Persa" e
"1001 Noites", que vendem tapetes, jóias e quadros. Somados aos
"Shoptime" e "Shoptour", delata-se a dissimulada vocação das
emissoras, vender, como um armarinho da esquina. Durante
anos, a Globo nos ofereceu lotes
de notícias de referência duvidosa. Comparando, era como se
um anel de ouro leiloado pela
CNT, que exibe o "1001 Noites",
fosse, na verdade, de legítimo latão.
Os dramas existenciais da
emissora levavam muitos telespectadores, que os americanos
chamam de "consumidores", a rever cada notícia. Será que
agora seus consumidores fecharão negócios em quatro vezes
o valor solicitado? O Brasil seria outro sem a Rede Globo? Seria melhor? Até quando durará este rancor? Até lá, muitos sujeitos aparentemente bêbados continuarão a xingar o seu logo.
Detalhe penoso: havia três ocupantes no carro, e nenhum
deles reagiu nem quando o pedestre deu um tapa no capô, antes de sair fora. O totem emudeceu-se resignado.
A COLUNISTA BIA ABRAMO ESTÁ DE LICENÇA
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