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CRÍTICA
O mau gosto e o desgosto
EUGÊNIO BUCCI
A COLUNA de Daniel Castro, na Ilustrada, noticiou há
poucos dias que, em uma carta enviada "aos amigos", José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, negou qualquer possibilidade de reassumir o comando
da Rede Globo. A carta teve trechos reproduzidos também em
outros jornais, o que é natural. Trata-se de um documento de
interesse jornalístico. Boni foi o principal artífice do que acabou ficando conhecido como o "padrão Globo de qualidade".
Esteve à frente da rede de Roberto Marinho durante 30 anos.
Agora, o tal padrão foi para o vinagre. Nas palavras de Boni, citadas por Daniel Castro, ele estaria
em "fase explícita de extinção".
Do ponto de vista de quem escreve crítica de televisão, e é isso o
que procuro fazer aqui neste espaço do TV Folha, os rumores sobre uma possível volta ou ida de
Boni ou de qualquer outro executivo para qualquer cargo de qualquer emissora constituem dados
irrelevantes. A crítica deve ignorar os movimentos de bastidores.
Ela se ocupa daquilo que sai da tela em direção aos olhos do telespectador ou, em outras palavras,
dos fios invisíveis que amarram
os olhos do telespectador ao que se passa na tela. A crítica de
televisão não é a análise de um quadro ou de um programa como se fossem objetos à parte, mas é a crítica do laço social
(material, simbólico e imaginário) que se dá por obra da TV,
um laço que se tece por meio dos programas, é claro, mas,
principalmente, por meio do olhar do telespectador. A carta
do Boni só foi lembrada aqui pelo que fala do "padrão Globo
de qualidade": isso é o que vale comentar, pois aquele era um
padrão de socialização do brasileiro pela TV.
Tenho insistido, e volto a insistir, que o "padrão Globo de
qualidade" não era simplesmente uma escolha intencional
dos gerentes, mas um padrão ideológico tornado possível pelo
regime autoritário. Não é bem que a liderança da Globo se devesse ao seu autodenominado padrão de qualidade; era antes
o contrário: o tal padrão é que só foi possível porque dispunha
de condições prévias, o monopólio entre elas. O Estado autoritário distribuía as concessões como se fossem capitanias hereditárias, privilegiando certos grupos econômicos em detrimento de outros e inibindo a concorrência. Houve competência da Globo? Sem dúvida, inegável. Houve mais que competência: houve brilho indiscutível. Mas houve, acima disso, a
necessidade de dar uma cara unificada para o Brasil. Essa cara
unificada, uma necessidade estratégica dos militares no poder, ficou a cargo da Rede Globo.
O que foi o "padrão Globo de
qualidade" senão a face da integração nacional sob a ditadura?
Claro que houve aí momentos de
mal-estar, houve censura às novelas, houve arestas, mas nada disso
foi definidor. O que definiu o "padrão Globo de qualidade" foi a necessidade imperativa de mostrar
ao Brasil qual era a cara do Brasil.
Era um Brasil de notícias governistas, de regionalismos de cartão-postal, de ufanismos futebolísticos e, por favor, sem negros
nas novelas, sem evangélicos no
horário nobre, sem excluídos desdentados no auditório. Um brasilzinho pra mulher de general ver e achar bonito. O "padrão
Globo de qualidade" era a expressão do bom gosto da classe
média (bom gosto não é nada além do gosto médio da classe
média). E não tinha concorrência, só por isso que reinava,
mandão, pacífico e ordeiro. Ainda bem que ele já era.
O que acabou não foi o padrão Globo, mas a sua sustentação
histórica. Hoje, ele seria impossível. A concorrência está aí,
selvagem, desbocada e furiosa. Está quase atrapalhando o monopólio. E o monopólio está aí, querendo provar que pode ser
ainda mais selvagem, mais desbocado e mais furioso. O bom
gosto vai virando impostura, vai caindo no que se chama de
mau gosto. Para quem gosta de TV, como o próprio Boni, é só
desgosto.
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